March 31, 2008

Poesia e Pedra

Sempre gostei de poesia. Confesso ser mais fã de Quintana do que de Drummond, mas não acho que exista um poema que descreva minha vida mais fielmente do que este:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade


De vez em quando fico a me perguntar por que existem tantas pedras no meu caminho, mas em vez de parar para responder a pergunta, sigo em frente, querendo apenas seguir meu caminho, mas eis então que surge a tal pedra, que cisma de aparecer justo no meu caminho...

March 29, 2008

Capitalismo Selvagem

Todo mundo sabe que eu amo os Estados Unidos. Desde pequena, sempre quis viver aqui, num país onde há ordem e respeito. Num país, que ao contrário do que muitos dizem, acolhe todo mundo, independente de cultura e religião. Foi aqui, desde muito nova, que conheci o verdadeiro sentido da palavra globalização, quando ganhei do Tio Sam a minha bolsa de estudos para vir fazer faculdade aqui. Na universidade, morava com búlgaras, turcas, indianas, nicaraguenses, chinesas, japonesas e até americanas. Uma experiência e tanto.

Resmungo, sinto muita falta de casa, mas gosto daqui. Acho o sistema educacional o melhor do mundo e tenho orgulho de ser produto dele, mas se tem uma coisa que me incomoda muito por aqui é a ausência de um sistema público de saúde. Não me canso de perguntar a tantos amigos americanos como pode o país mais poderoso do mundo ter um sistema de saúde tão capenga? Como podem as leis de proteção ao trabalhador serem tão incipientes? Há pouco vivi isto em primeira mão. Foi opção minha me desligar da Universidade de Maryland, mas não creio que eles tivessem condições de me manter na folha de pagamento. Aqui não tem licença de saúde paga pelo INSS. Seus "sick days", o equivalente à licença-saúde, são ganhos pro-rata, a medida que você acumula dias de serviço. Não é nada automático como no Brasil.

Mas voltando à questão da saúde, grande parte dos americanos é "underinsured" ou sub-segurados, ou seja, eles até têm plano de saúde, mas que não cobre praticamente nada. As seguradoras aqui são fortíssimas e a pressão para que os pacientes permaneçam o menor tempo possível no hospital é imensa.

Não me julguem mal. Não há ninguém que deteste hospital mais do que eu e que queira ter a estada lá abreviada ao máximo, mas tudo tem um limite. O sujeito faz uma cirurgia invasiva, leva uma baita anestesia e sai andando uma hora depois?

Por aqui estas coisas acontecem. Fiquei abobalhada quando o Blake me falou que a cirurgia de hérnia dupla dele seria ambulatorial. E nem foi por videolaparoscopia, foi no facão mesmo. Ele deu entrada umas 10:00 da manhã e meio-dia já estavam enxotando o coitado. Entra no centro cirúrgico, sai num piscar de olhos, toma um suquinho e "have a good day." Não é de se espantar que o coitado quase cai duro antes de sair do hospital. Foi preciso que nada menos que seis enfermeiras o amparassem.

Não bastasse esta disparate agora os planos de saúde estão forçando a barra para emplacar a idéia da "mastectomia drive-thru". No país do fast-food, agora a tendência é fast-surgery. A proposta é assustadora, mas muito real. Então agora em vez dos dois dias de internação depois da mastectomia, eles querem mandar as pacientes para casa, cheia de drenos e curativos para que elas se virem sozinhas. Uma covardia!

Mas parece que há algo que, pelo menos nós que moramos nos EUA, podemos fazer. Há uma petição dirigida ao Congresso Americano para que esta proposta aburda seja barrada. Quem quiser assinar, é só clicar aqui.

Não custa nada e pode evitar que esta barbárie se torne realidade.

Mil perdões pelo post inflamado e panfletário, mas não podia deixar passar.

March 28, 2008

Declaração de Direitos dos Jovens e Adolescentes Portadores de Câncer

A tabela aí em cima ilustra a triste situação dos jovens pacientes de câncer. Preste atenção nas colunas em vermelho. Repare nos números, nas idades. Pois é, as chances de sobrevivência de gente com eu estão mostradas (os escondidas?) ali numa das colunas vermelhinhas. Triste. Isto precisa mudar. Logo.

70.000 pessoas entre 15 e 39 anos que recebem o diagnóstico de câncer a cada ano nos EUA. Nas últimas duas décadas o aumento nos índices de sobrevivência nesta faixa etária foi ínfimo ou nulo. Ao assinar esta declração você está apoiando a Declaração de Direitos dos Jovens e Adolescentes para que ela se transforme num padrão para o tratamento e que venha a atender as necessidades desta população mal servida.

Acho que algo deste porte deveria ser feito no Brasil, onde não temos nada documentado sobre o câncer em pacientes jovens.

Nos EUA, país onde não existe sistema de saúde universal, há muitos problemas que precisam de uma solução imediata: acesso à saúde e proteção legal são exemplos.

No Brasil, o acesso à saúde é problemático, mas temos um sistema de saúde pública existente e leis que amparam os pacientes de câncer. Por outro lado, os planos de saúde são mais intransigentes que os americanos e os médicos muitas vezes minimizam o papel do paciente em seu próprio tratamento.

O fato é que cada vez mais jovens têm que lidar com o câncer no Brasil e no mundo e muito pouco tem sido feito para amenizar este sofrimento.

Achei interessante o que encontrei aqui.


Declaração de Direitos dos Jovens e Adolescentes Portadores de Câncer

Não somos casos pediátricos nem geriátricos
Temos necessidades únicas – médicas, sociais e econômicas
Entretanto, os direitos e a dignidade de adolescentes e jovens adultos são iguais aos de todos os indivíduos.
Merecemos ter nossas crenças, privacidade e valores pessoais respeitados.
Acesso à saúde é um direito, não um privilégio.

Nossos direitos, como os entendemos e queremos preservá-los, são:

1. O direito de ser levados a sério quando buscamos atenção médica para evitar o diagnóstico tardio ou errôneo, e o privilégio de ter discussões confidenciais com respeito ao nosso próprio tratamento.
2. O direito a um plano de saúde dentro das nossas possibilidades, assim como testes para detecção de doenças em estágio inicial, sem interferência de seguradoras de saúde ou status socioeconômico.
3. O direito aos métodos preservação de fertilidade e a informações e pesquisas sobre possíveis efeitos atuais ou futuros que o tratamento do câncer possa ter sobre nossa fertilidade.
4. O direito de ser informado sobre testes clínicos disponíveis e acesso razoável aos mesmos.
5. O direito de acesso direto a especialistas em câncer em adolescentes ou jovens e, quanda requisitada, uma segunda opinião independente de plano de saúde ou localização geográfica.
6. O direito de acesso a um(a) assistente social ou profissional especializado em pacientes de câncer jovens ou adolescentes.
7. O direito ao suporte psicológico “normalmente aplicável”.
8. O direito de ter nossa posição como estudantes ou profissionais protegida por lei enquanto tratamos o câncer a fim de minimizar discriminação.
9. O direito a explicações claras sobre os efeitos colaterais da doença e do tratamento a longo prazo e a todas as opções para procedimentos reconstrutivos ou de reabilitação.
10. O direito de ter todas as opções de tratamento explicadas a nós em detalhes, ter todas as nossas perguntas respondidas, e receber esclarecimento quando necessário para que possamos ser parte ativa de nosso tratamento.


Nenê Hilário


Mais uma ótima notícia.

Nenê Hilário voltou às quadras dois meses depois da cirurgia para remoção de um tumor no testículo e um mês após a quimioterapia. Obviamente a platéia aplaudiu de pé a estréia do atleta que entrou na quadra dois minutos antes do final da partida, ontem à noite.

Foi um momento eomcionante não só para Nenê para como todo o time dos Denver Nuggets, que terminou vencendo os Dallas Mavericks de lavada e está cada vez mais perto das playoffs na região oeste.

Nestas horas me vêm à cabeça uma frase que é muito usada por outros sobreviventes: O câncer não é uma sentença de morte, mas uma convocação à vida.

Fico feliz quando vejo alguém tão jovem que enfrenta este problema com tanta coragem e garra. Uma vez uma amiga minha disse que toda vez que via a Ana Maria Braga se sentia feliz, por saber que assim como ela, a Ana tinha vencido a batalha. Me sinto exatamente assim ao ver não só a Ana, mas o Nenê e tantas outras pessoas. Tenho certeza que ontem o Nenê não entrou em campo sozinho, pois levou com ele um pedacinho de cada um de nós, companheiros de batalha.

Depois do jogo, já no vestiário ele disse:

"Sobrevivi, ainda estou aqui. Sou um novo homem, mais forte do que nunca, só digo, obrigada a todos".

Que ontem tenha sido só o começo de uma volta memorável. Talento e coragem o Nenê já provou que tem de sobra. Mais um belo exemplo de superação. Ganhei o dia.

March 27, 2008

Dinheiro compra felicidade...desde que gasto com os outros!!!


Como adoro uma pesquisa, resolvi colocar a prova o último estudo divulgado pela mídia americana que diz que aqueles que gastam dinheiro com os outros sentem maior satisfação do que aqueles que preferem gastar comprando presentes para si mesmos.

Ontem, depois de uma semana muito feliz, quando pude deixar para trás tantas preocupações e tanto sofrimento, fiz o que meu coração já vinha pedindo há tempos. Resolvi fazer duas doações para duas causas que têm se tornado cada vez mais importantes para mim: American Cancer Society e St. Joseph Catholic Community.

É incrível como nosso humor muda quando enfim resolvemos fazer algo de bom. Entrei na igreja sorridente e saí de lá mais feliz ainda. Agora sou "registered parishoner" da igrejinha aqui no fim da minha rua. Decidi que queria ter uma relação maior com a igreja depois de ir à Missa dos Enfermos, que foi linda. Longe de mim ser fanática religiosa, mas já está mais do que na hora de me dedicar um pouco mais à minha fé.

Saí da igreja e fui direto para a American Cancer Society. Com a minha doação, comprei duas tochas e uma luminárias que serão acesas durante a Cerimônia dos Sobreviventes que abre o Relay For Life, em junho. Comprei uma para a minha avó, que sobreviveu a um linfoma não-Hodgkins, outra para mim e ainda uma luminária para o Ivan Karlos, um rapaz corajoso que luta bravamente contra um câncer de pulmão, mas que com a Graça de Deus, estará curado muito em breve.

Voltei para casa sorridente, afinal quem não gosta de ver outras pessoas sorrindo. E não custa tanto assim... Acho que os cientistas de Harvard mais uma vez estão certos.

Para quem tiver interesse, aqui embaixo há mais informações sobre o estudo.

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Uma pesquisa recente revelou que aqueles que gastam uma quantia razoável com outras pessoas experimentam maior satisfação do que aqueles que compram presentes para si mesmos, Cientistas da Universidade de Harvard reuniram 632 americanos e fizeram perguntas sobre sua renda, seus hábitos de consumo e seu nível de felicidade.

Separadamente, os especialistas reuniram 16 profissionais que estavam prestes a receber um bônus entre US$3.000 e US$8.000, e fizeram as mesmas peguntas oito semanas antes e depois do bônus.

Na primeira experiência, os resultados mostraram que o nível de renda dos entrevistados não era um fator a ser considerado no nível de felicidade, que era mais alto naqueles que gastavam dinheiro com outros, se comparados com aqueles que gastavam consigo mesmos. A segunda pesquisa mostrou que o aumento no índice de felicidade dos funcionários Não foi afetado pelo tamanho do bônus. Entretanto, este mesmo índice parecia aumentar em relação à quantia que os funcionários gastaram com outras pessoas ou doaram para caridade, de acordo com o jornal britânico The Guardian.

“A maioria das pessoas imaginaria que se você ganha mais dinheiro você vai ser muito mais feliz,” disse o Professor Michael Norton, da Universidade Harvard. “Nossos resultados, e os resultados de muitas outras pesquisas, mostram que ganhar mais dinheiro tornam você uma pessoa um pouco mais feliz, mas não tem um impacto imenso. Nossos estudos mostram que talvez sejam as pequenas mudanças na forma como você gasta este dinheiro que fazem a diferença”.

The Telegraph, um outro diário britânico, reportou que um estudo seguinte onde os especialistas deram aos pesquisados US$5 ou US$20 para gastarem como quisessem, revelou que aqueles que gastaram o dinheiro com outras pessoas se disseram mais felizes se comparados àqueles que gastaram o dinheiro em si mesmos.

“Então em vez de comprar um cafezinho para você, compre um café para o seu amigo e isso pode fazer de você realmente uma pessoa mais feliz”, disse Norton.

Norton é co-autor do estudo realizado em parceria com Dr. Elizabeth Dunn e a mestranda Lara Aknin, da Universidade de British Columbia, no Canadá.

March 26, 2008

Enfim Hopkins!


Ainda estou em ritmo de comemoração. Sempre achei que tivesse nascido para ser rainha mesmo, pois comemoração na corte sempre dura no mínimo uma semana inteira. Não faço por menos: estou comemorando a ida a Johns Hopkins até hoje. Acho que merecidamente.

Depois de penar para conseguir marcar uma consulta com o pessoal da equipe de Câncer de Fígado de Hopkins, segunda-feira enfim consegui realizar meu sonho. (Tem gente que sonha em entrar para o Big Brother ou ser artista da Globo, eu sonho em ser paciente do Centro de Câncer de Hopkins. Cada louco com a sua mania!) Para quem não lembra, antes de concordar em me ver, o médico me pediu que enviasse zilhões de laudos e exames por fax. Além disso, precisei fazer uma redação explicando o motivo pelo qual eu deveria ser examinada pela equipe. Não é brincadeira. Alguns dias depois de mandar tudo o que me foi pedido, recebi a ligação da enfermeira, mas que para mim teve o mesmo sabor de um ticket de loteria premiado. Desliguei aos pulos e liguei para o Blake na mesma hora. "Fui aceita em Hopkins! Fui aceita em Hopkins!" Obviamente não como estudante, mas desta vez como paciente. A última vez que gritei tanto assim foi quando ganhei uma bolsa para vir fazer faculdade aqui nos EUA. Tinha de dezessete para dezoito anos...

Depois de tornar a consulta oficial, fiquei aguardando ansiosamente. Aqui nos EUA a coisa é bem diferente do que no Brasil. No país que inventou a máxima, "tempo é dinheiro", o povo cumpre ao pé da letra. Em vez de preencher a ficha quando chega ao consultório do médico, já na hora marcada, aqui o paciente recebe a ficha pelo correio, assim que marca a consulta, e é instruído a já levá-la devidamente preenchida no dia marcado para agilizar o processo de "check-in", que nos EUA não é coisa exclusiva de hotel!

É claro que preenchi minha ficha no mesmo dia que recebi o envelope pelo correio. Verifiquei todos os exames, li todos os relatórios só para ter certeza de que toda a informação ali contida era exata, afinal, tempo é dinheiro e ninguém quer deixar o que está fazendo para consertar coisa alguma. Já pensou se eles acham de não me atender por que esqueci o número de bolsas de sangue que tomei?! Nem pensar!

Fiz a pilha de exames, laudos e relatórios e deixei tudo arrumadinho em cima da mesa. Coloquei tudo em ordem. Me certifiquei do horário e da localização do hospital. A tal ficha vinha com instruções detalhadas de como chegar ao local, onde deixar o carro e o passo a passo já dentro do Outpatient Center, onde seria atendida.

No Brasil, o sujeito vai ao médico pegar a requisição, depois vai ao laboratório fazer o exame, espera tantos dias para receber o laudo, pega o exame, marca a consulta com o médico. Neste vai e vem lá se vão não sei quantos dias. Se o paciente não for muito organizado, na hora da consulta o tal exame já até caducou. Nos EUA é tudo muito diferente. O médico contata o plano de saúde diretamente, recebe a autorização e marca o exame do paciente. Em Hopkins a coisa vai mais além: todos os exames são realizados no dia da consulta e chegam ao médico em questão de pouquíssimo tempo, tudo informatizado através da rede do hospital. Tudo muito organizado. Coisa de primeiro mundo, como diria a minha mãe.

Semanas antes da minha consulta, juntamente com a ficha e com o mapa, recebi a minha agenda detalhada para o dia 24 de março de 2008. Resumindo tudo, eles pediam para que eu me apresentasse ao "patient check-in", no lobby até as 13:30 para meu primeiro exame, uma tomografia computadorizada, marcado para às 13:50. No lobby, assim que fizesse o check-in, recebeira a minha identidade de Johns Hopkins, que é mais ou menos um VIP pass para a boate mais chique ou um American Express Black no mundo hospitalar, ou seja, só um grupo muito seleto (ou muito doente?) tem acesso a tal regalia. Fiquei toda contente quando ganhei meu cartãozinho laranja. Além do cartão VIP, ganhei uma pulseira branca com a data do dia. Ganhei também uma outra pulserinha que era a cópia do cartão VIP.

Segundo a cartinha, que parecia o mapa da mina, depois do check-in no lobby, deveria me dirigir ao terceiro andar para a tomografia. Chego lá, assino a lista de chamada e espero ser chamada. Pontualmente às 13:50, ouço meu nome. A enfermeira simpática me leva para uma outra sala de espera, já na área restrita, e de lá me leva para o "vampiro", que é o coitado encarregado de espetar a gente. Esta é uma das horas mais chatas para mim, já que por uma grande ironia do destino, minhas veias são péssimas! Além de quase invisíveis ou inexistentes elas ainda pulam quando espetadas. Minha mãe diz que veia assim chama-se "veia bailarina". Faz sentido.

Fico lá esperando o tal vampiro aparecer quando de repente avisto um negro dois por dois, que mais parece jogador de futebol americano do que enfermeiro, mas um amor de pessoa. "Hi, my name is Phil. How are you today?" Gente boa o cara. Me apresento e já vou dando meu recado "Minhas veias são um pouco complicadas e temperamentais." Ele ri e depois de examinar meus braços, me dá razão. Normalmente peço para que eles usem "butterfly", o tipo de agulha que eles usam em bebê, mas para este exame eles precisam de uma agulha bem grossa. Azar o meu.

Primeiro o Phil olha o braço direito com atenção, como não vê nada promissor, passa para o esquerdo. Ao notar que a coisa piora deste lado, volta ao direito e se concentra. Respira fundo, mira numa das veias transparentes e fura. Nem dói tanto assim, mas a coitada não sangra!!! Até aí tudo bem, é raro eles conseguirem de primeira. Prendo a respiração, mordo o indicador mais uma vez e ai! outro furo no meu braço. Faço pensamento positivo para a desgraçada da veia sangrar. Parece que está tudo certo. Ele testa o acesso com o soro, tudo OK desta vez. Estou pronta para o exame.

Depois de devidamente furada, sou encaminhada para sala de imagem. Acho estranho ninguém ter me pedido para trocar de roupa ainda, afinal se esbarro em algum ligar, é fácil perder o acesso. Chego na sala, o enfermeiro sorri, elegia meu sapato, me manda deitar na maca, me cobrir com o lençol e abaixar minha calça jeans até o meio da coxa. Nunca vi nada assim em nenhuma das zilhões de tomos que já fiz. O lance é rápido. Faço o que me mandam. Respiro. Prendo. Solto. Respiro. Prendo. Solto. Pronto! Já estou liberada. Inacreditável. Passei da tarefa dois para tarefa três. Pulo uma casinha no jogo. Volto ao primeiro andar.

Fico com o acesso no braço para que eles possam coletar sangue sem me furar de novo, ou assim espero. Sigo as intruções no plano de ataque, de volta ao primeiro andar, me dirijo ao "express check-in", assino a lista e aguardo a minha vez. Em pouco tempo meu número é chamado. Como paciente profissional que sou, já aviso à enfermeira-vampira que vou facilitar a vida dela, pois já venho com acesso pronto. Ela sorri, ainda mais depois de olhar minhas veias invisíveis. Posso ver a cara de alívio dela. Então só para conferir, ela testa o acesso e...surpresa!!! Não funciona mais! Em menos de cinco minutos o perdi! Começa a batalha de novo. Olha daqui, olha de lá. Pouquíssimas opções e dois furos no braço. Ela arrisca o terceiro, mas nada, a veia não dá sinal de vida. Lá vou eu para quarta espetada..e só sai um mera gota de sangue. Nada feito! Na quinta vez, ela pega uma veia boa e eu respiro aliviada ao ver o sangue jorrando e enchendo todos aqueles potinhos coloridos. Aleluia!!! A tortura chega ao fim.

Pelo menos a física, pois a psicológica só vai acabar quando o Dr. Pawlik olhar para mim e disser que está tudo bem. Minha gincana continua. Olho para o mapa, só me falta uma etapa: a consulta médica. Eu e Blake nem acreditamos. São três horas da tarde e eu só tomei um cereal antes das nove, mas não sinto fome nenhuma. Sigo as instruções do papel e me dirijo ao oitavo andar, onde os médicos fazem os atendimentos. Assino a chamada de novo e sento para esperar. Minutos depois, a mesma rotina se repete: ouço meu nome, sou encaminhada para uma outra salinha onde vou esperar para ser atendida. Minutos depois, sou levada para o consultório onde aguardo o Dr. Pawlik, que está um pouco atrasado. O Blake tenta esconder a ansiedade e me pede calma, mas nós dois mal conseguimos ficar sentados na sala. Finalmente Dr. Pawlik chega, minutos depois.

Ele aparenta ainda menos do que seus trinta e poucos anos. Para falar a verdade, aparenta uns 15, no máximo uns 19, recém saído da puberdade. Pawlik é franquizo e branquinho, mas sorridente e acessível. Entra no consultório apressado e logo pede desculpas. Senta na minha frente e olha para a tela computador, onde vê os exames que acabei de fazer no mesmo dia. Mal consigo respirar, quando ele sorri e diz animadamente: "Vejo um fígado enorme e saudável. Isso é ótimo. Então o que você quer de mim? Que eu te monitore daqui para frente? Por mim, tudo bem." A minha vontade ali é me jogar no chão de joelhos e beijar aquele médico. Melhor notícia impossível. Depois de tanto sofrimento, tanta luta, parece que as coisas começam a melhorar para mim. Conversamos sobre meu caso e ele me explica uns detalhes mas se apressa em dizer que precisa examinar meus espécimens novamente. Em alguns casos, nem tão raros assim, os patologistas de Hopkins discordam dos laudos dados por laboratórios externos e este laudo certo é o principal para a conduta de acompanhamento.

Depois das explanações iniciais, tomo coragem e faço as perguntas que me não me saem da cabeça há meses:

* Vou poder engravidar?
* Tenho que esperar dois anos? Por quê?
* Tenho alguma restrição alimentar?
* Quando vou estar liberada para beber um champagne de vez em quando?
* Qual vai ser o método de controle? Qual o perigo da exposição à radiação?
* Qual meu prognóstico de cura? Vou morrer daqui a cinco anos?

Pawlik então sorri e responde: "Pode engravidar amanhã se quiser. Isto é uma opção pessoal sua. Obviamente o risco de uma recidiva diminui com o tempo, então se puder esperar um pouco, melhor, mas se você me disser que ter filhos é uma prioridade sua e que você quer começar agora, não vou me opor. Ao que tudo indica, a gravidez não aumenta seu risco em nada."

Isso era tudo que eu mais queria ouvir. Não porque pretenda ter filhos amanhã, mas saber que tenho esta opção é maravilhoso. Sobre as restrições alimentares, Pawlik disse que não existem, mas elogiou meu empanho em me alimentar de uma forma saudável, o que quer dizer que continuo na dieta vegana. Sobre álcool a reposta dele foi na verdade uma pergunta: "Por que não? Seu fígado está 100% recuperado, então pode beber a hora que quiser, desde que use de bom senso." O fato é que liberada ou não, o álcool, que nunca foi importante para mim, jamais vai ter o mesmo gostinho, então vou continuar tentando evitar ao máximo. (Confesso que depois da consulta, brindei um dia tão especial com uma Mimosa, mas quer ocasião mais especial que esta?)

Sobre o controle, Pawlik diz que tem que ser feito por tomografia, mas isso até eu já sabia. Nos EUA, ninguém usa untrassom para procurar recidivas, mas c'ést la vie. Quando perguntei a ele sobre radiação, ele mais uma vez riu e disse que se recebe mais radiação viajando num avião a jato do que numa máquina de ressonância. Na hora penso, este médico é bom: pão-pão, queijo-queijo.

Finalmente com relação ao meu prognóstico e à suposta morte iminente, Pawlik ri de novo e responde: "De jeito nenhum. Você está curada. O risco de uma recidência sempre existe, por menor que seja, mas nada aqui me faz acreditar que isso vai acontecer. Vamos monitorar você para sempre, mas só. Agora vai viver a sua vida e a gente se vê daqui a quatro meses."

E com estas palavras encerramos a maratona Johns Hopkins. E assim o tão esperado dia 24 de março de 2008 acaba, com um grande sabor de vitória para mim e para o Blake, que vencemos mais um obstáculo no nosso caminho. Um ano de casados, duas cirurgias, muitas batalhas (casamento por procuração, dispensa da arquidiocese para casamento misto, visto americano, mudança, green card, etc), mas acima de tudo muita, muita felicidade. Se o dia 24 de março de 2007 foi o mais feliz da minha vida, o dia 24 de março de 2008 não ficou atrás.

Amém.

Muito legal...

Fiquei toda boba quando vi este post no blog da fotógrafa-amiga Pati Figueira.
É só clicar no título do post para ver o que estou falando.

March 25, 2008

Mundo cor-de-rosa ou La Vie En Rose

Um post rapidinho só para dizer que as notícias foram as MELHORES IMAGINÁVEIS!!! Estou ótima, meu fígado enorme e saudável e posso levar uma vida NORMAL. Só tem uma coisinha: eu não sei ser normal!!!! hahaha

Brincadeiras à parte, as orações dos amigos e familiares devem ser fantásticas e muito poderosas, pois entrei naquele hospital morta de medo e saí cheia de esperança e vida.

Vou contar a minha aventura num outro post bem mais detalhado, pois um dia na vida de uma paciente de Johns Hopkins merece ser narrado em detalhes. Parece até coisa de ficção científica. Brave New World ou Admirável Mundo Novo perde!

Mas por enquanto me sinto nas nuvens e a trilha sonora abaixo ilustra muito bem meu estado de espírito. Espero que continue assim sempre...

Estas fotos

As fotos que vocês vêem nos posts abaixo são resultado do trabalho maravilhoso da fotógrafa e amiga, Patricia Figueira www.patriciafigueira.com.br. Cheguei a ela fazendo pesquisa na internet, seguindo somente a minha intuição. (Para que acha marido na internet, nada mais normal que procurar fotógrafo, né?) Tinha indicações de vários fotógrafos, mas quando eu e o Blake comparamos os trabalhos, não tivemos dúvida de que queríamos que a Pati fotografasse nosso casamento. Começamos as pesquisas aqui em Maryland e ligamos para ela daqui mesmo. Quando cheguei no Rio, só fiz uma reunião rápida e fechamos na hora.O produto final está aí. Lindo!

É nestas horas que percebo que tenho que seguir mais a minha intuição. Consegui fotos perfeitas, um álbum muito clássico, lembranças que vou levar comigo a minha vida toda e ainda fiz uma amigona, pois a nossa empatia foi tanta, que a Pati e eu nos tornamos muito amigas. Torço muito por ela, que além de ser uma fotógrafa muito talentosa e sensível, é um ser humano daqueles de tirar o chapéu.

It's a Beautiful Day - III





It's a Beautiful Day - II





It's a Beatiful Day!





March 24, 2008

É Hoje o Dia

Se exatamente há um ano me sentia na lua, hoje me sinto um pouco ansiosa. Saio daqui a pouco e espero ter um dia tão feliz quanto tive em 2007. Que as notícias que receberei hoje me tragam tanta felicidade e esperança quanto senti somente há um ano.

Difícil apagar esta cena aqui da minha memória. Meus três minutos de fama!

March 23, 2008

Os mexicanos e eu

Como prometi, venho aqui contar do filme que vi ontem. Bajo la Luna or Under the Same Moon é um daqueles filminhos muito fofos cujo personagem principal é um menino gorducho e carismático de nove anos. Isto por si só já encanta qualquer um. O filme é uma mistura de Central do Brasil com America, novela da Gloria Perez, e narra a saga de uma mãe solteira que deixa a vida e o filho numa cidade pobre no México em busca do American Dream em Los Angeles. Até aí, nada demais, até que a avó do menino morre e ele arma uma fuga para encontrar a mãe nos EUA. O resto vocês têm que ver.

Cada vez fico mais convencida que gosto muito do México. Gosto das pessoas, gosto da cultura, das cores e de muita coisa que sai dela, entre elas o Gael Garcia...hahaha Falando sério, acho os atores mexicanos muito bons e no filme de ontem não fiquei nem um pouco decepcionada -- trabalho muito bacana.

Como já previa, saí de lá ainda mais confusa sobre a questão da imigração, pois o argumento de que ninguém (ou pelo menos, ninguém normal em sã conciência) deixa as pessoas que ama e o lugar que chama de lar para se sujeitar a condições sub-humanas por um motivo banal. Difícil não se comover com o drama de tantos. Seria tão bom que as pessoas pudessem ter uma vida digna em qualquer canto do mundo. Mas não é o que acontece por aí.

Tenho que admitir que fiquei surpresa de ver um cinema em Bethesda, subúrbio chique de Washington, lotado de gringos curiosos para conhecer mais desta história que se desenrola em todo o canto por aqui -- aposto que a maioria deles tem imigrantes ilegais limpando suas casas.

Mais surpreendente foi ver, bem na fileira da minha frente, vários mexicanos sentadinhos ali, naquele cinema independente, reduto dos pseudo-intelectuais americanos. Estavam eles ali ansiosos, curiosos e prontos para ver a sua história na telona. À primeira vista podiam parecer peixes fora d'água não fossem eles os verdadeiros protagonistas do filme.

March 22, 2008

A ansiedade e os mexicanos

Estou aqui tentando segurar a ansiedade até segunda-feira, mas está difícil. Estou ao mesmo tempo animada e temerosa. Não consigo parar de pensar no assunto. Para não enlouquecer e levar o Blake a loucura junto comigo, resolvemos sair para nos divertir um pouco. Já estou tendo crise de abstinência, pois faz alguns meses que não vejo um filme cabeça.

O Blake também gosta do gênero, Graças a Deus. (Não falei que meu marido era diferente?!) Então daqui a pouco vamos sair para ver um filme mexicano-americano, Under the Same Moon ou Bajo La Luna.



Eu adoro filmes com a temática mexicana, pois me lembram muito do Brasil. Sei que a afirmativa costuma desagradar muitos brasileiros, mas acreditem, depois de mais de 15 anos de experiência aqui nos EUA, cheguei à conclusão de que somos muito mais parecidos com "nuestros hermanos" do que queremos admitir. Depois de muito espernear cada vez que me chamavam de hispanic, resolvi abraçar a minha latinidade. Nós brasileiros gostamos de nos considerar diferentes dos outros latinos, principalmente dos coitados dos mexicanos. Achamos os mexicanos cafonas, exagerados. Deve ser tudo culpa do Sílvio Santos. Pura bobagem. Puro preconceito. Os mexicanos são um povo alegre e trabalhador que fazem malabarismos para sobreviver tanto na sua terra natal quanto nos países para onde emigram. Ñão são nada diferentes da maioria dos brasileiros que vêm para os EUA em busca do tão famoso American Dream.

Ouvi falar que este filme por pouco não foi parar na gaveta de algum executivo, pois algum tempo atrás, imigração era um tema que ninguém queria debater, era uma ferida aberta que ninguém queria tocar, coisa que só interessava aos próprios imigrantes ou ao pessoal que mora na fronteira com o México. Entretanto, com a proximidade das eleições presidenciais americanas, tudo mudou e o tema, que até bem pouco era sempre deixado à margem dos grande debates, foi trazido a tona e ocupa lugar muito importante nos discursos dos pré-candidatos. Tanto o republicano John McCain, quanto os democratas Hillary Clinton e Barack Obama sabem que a reforma nas leis de imigração é mais do que necessária e defendem formas de legalizar imigrantes desde que eles aprendam o idioma inglês e paguem multas. Mas por enquanto isto é mais conversa do que outra coisa. Os três candidatos votaram a favor do polêmico muro entre EUA e México e a "caça às bruxas" corre solta em vários estados americanos, inclusive bem aqui em Maryland.

Esta questão é tão ambígua que é difícil ter uma opinião formada. Se uma parte de mim se pergunta se estes imigrantes ilegais vieram para este país conscientes de estar cometendo um crime -- pois ninguém é idiota a ponto de achar que tem o direito de entrar e trabalhar em qualquer país -- por que deveriam receber anistia? Seria justo com as milhares de pessoas em tantas partes do mundo que acalentavam o mesmo sonho, mas por obediência às leis vigentes não colocaram seus planos em prática? Seria justo comigo e com tantos outros imigrantes que cumpriram todas as exigências -- e foram sujeitados a todo tipo de investigação -- para estar aqui de forma legal? Se a anistia de fato ocorrer, isso não fará que o número de imigrantes ilegais aumente ainda mais, pois sempre haverá a experança de uma nova anistia no futuro? A imigração aqui já não é generosa o bastante? Se o sujeito fica ilegal durante 20 anos mas no fim das contas casa com um/a americano/a, ele/a recebe o greencard. SPor incrível que pareça isto é a mais pura verdade. Eu mesma sei de alguns casos que se encaixam nesta categoria.

Mas a minha outra parte, aquela parte mais sensível, vê de perto a luta destas pessoas que só querem uma vida melhor. Há muitos imigrantes ilegais perigosos e problemáticos, mas há muitos outros honestos e trabalhadores que dariam tudo e pagariam as mais altas multas por uma chance de ficar aqui de forma legal. Será que a culpa é só dos ilegais ou é dos americanos que os empregam pagando um décimo do que pagariam a um americano? Não dizem as leis do capitalismo que só há oferta onde existe demanda? Será que existe outra forma de sanar este problema de dimensões absurdas que não seja legalizar uma situação que já existe há tanto tempo? Obviamente tapar o sol com a peneira -- como os americanos têm feito há séculos -- está fora de cogitação, então o que fazer?

Não sei, sinceramente. Vou ver este filme hoje e tenho certeza que sairei de lá com estas mesmas perguntas, mas duvido que encontre respostas. Aos poucos tenho aprendido que o primeiro passo para enfrentar qualquer problema é aceitar que ele existe. É falar sobre ele, é expor opiniões diversas, é ouvir outras colocações. Então a parte otimista dentro de mim já acha que um filme como este ser sucesso por aqui já é um bom começo.

March 21, 2008

Está chegando...

Mal posso acreditar que segunda-feira, dia que completo meu primeiro ano de casada, vou enfim ter a minha primeira consulta com meu novo médico, Tim Pawlik, em Johns Hopkins. Estou feliz em saber que finalmente começarei meu acompanhamento médico aqui nos EUA, mas ao mesmo tempo fico meio insegura, com um certo medo de ter que abrir a tal "caixa de Pandora" mais uma vez.

Toda vez que entro naquele tubo ou vejo aquela sonda de ultrassom, nunca sei o que vai acontecer. Depois de cinco anos, quando já ia me acostumando a encarar os tais exames e a frieza das salas com alguma naturalidade (se isso é mesmo possível), eis que o destino me dá um puxão de orelha, assim do nada. Então desta vez é como se estivesse começando do zero.

Tenho medo também do que o Dr. Pawlik possa vir a me dizer. Secretamente rezo a todo instante para que ele não me dê mais notícias ruins. Oro para que além de um gênio da medicina, ele seja um ser humano no verdadeiro senso da palvras. Peço a Deus para que ele tenha sentimentos, como piedade e fé. Estou cansada de vaidades e palavras duras. Também posso viver perfeitamente sem arrogância.

Eu me sinto ótima, sempre me senti, mas aprendi que no meu caso isto não quer dizer muita coisa. É difícil passar por aqueles exames de novo e não sentir medo. Difícil não me transportar de volta ao passado.

Minha sensação naquele fatídico dia de dezembro foi de que bem ali, já na reta final, milímetros de distância do ponto de chegada, caí na casa errada, e não tive que voltar duas casinhas, mas acabei perdendo todas as minhas pecinhas e voltando para o início do jogo, para a estaca zero. Sensação terrivelmente amarga. Mas aos poucos já avancei algumas casinhas e dia após dias recupero um pouco da minha-auto confiança.

Sei que tenho que domar este medo agora. Tenho que pensar positivo e me ater aos fatos. O último exame, que fiz no início do mês passado estava ótimo: o fígado já de volta ao tamanho normal e em funcionamento praticamente perfeito. Estes são motivos de sobra para me manter otimista. E muito embora vários pensamentos menos bons teimem em me assombrar, tenho que me esforçar ao máximo para mantê-los bem longe de mim.

March 20, 2008

Por que escrevo?

Hoje recebi não um, mas dois emails que me emocionaram demais. Estou eu aqui, mais uma vez segurando as lágrimas na frente deste computador. Este blog tem sido uma bênção na minha vida, pois parece que as pessoas mais bacanas e mais sensíveis acabam passando por aqui e me deixando mensagens lindíssimas. Eu, que depois da doença me tornei a maior manteiga derretida do mundo, volta e meia vou às lágrimas com as mensagens de carinho que recebo. Choro mesmo. Choro muito. Choro copiosamente. Choro de alegria. Choro de tristeza. Choro nem sem o porquê.

Nestas horas é que me cai a ficha e realmente entendo o motivo pelo qual escrevo. Se no início meu único objetivo era colocar para fora todas as emoções que estavam em ebulição na minha cabeça, na esperança de evitar a loucura, hoje escrevo para me conectar com um mundo maravilhoso que está ali fora e que eu jamais pensei que existisse. Graças a este blog já fiz tantas amizades legais e até estreitei laços que já existiam no mundo real mas que ficaram muito mais sólidos no mundo virtual.

Esta energia é uma coisa absurda e é dela que me alimento. Um dos grandes desafios ao me mudar para cá foi justamente o isolamento dos subúrbios americanos, a falta deste contato mais íntimo com as pessoas, a falta de calor humano. Nunca pensei que pudesse sentir isso através de uma máquina. Esta tecnologia que às vezes é tão fria e impessoal, ao mesmo tempo nos desperta sentimentos tão humanos e nos faz sentir tão próximos uns dos outros, apesar das imensas distâncias. Passo grande parte do meu tempo de frente para esta máquina que me traz tanta coisa boa, tanta informação, tantos amigos e – é verdade! – até o marido!!!

Sempre adorei escrever e muita gente me dizia que eu levava jeito para a coisa. Acho que foi acreditando nestas pessoas e seguindo a minha paixão que muito cedo decidi ser jornalista. Pensei em ser escritora, mas a idéia de expor meus sentimentos me deixava meio desconfortável, então a idéia de ser jornalista era perfeita, pois como jornalista a gente escreve mas nunca se expõe, pois as matérias têm que ser acima de tudo imparciais. Parecia o ideal para mim.

Ledo engano. Um de muitos. Depois de alguns anos, vi que o jornalismo também não era a minha praia. Não gosto de sensacionalismo e o bom jornalismo tem cada vez menos importância hoje em dia. Então fui ajustando meus planos e passei a escrever corporativamente: relatórios, palestras, discursos, briefings, etc. Tornei-me uma ghostwriter, sumi completamente na minha escrita, nem nos créditos meu nome aparecia mais, mas eu continuava escrevendo e isso já me bastava.

Mas na minha vida de montanha-russa tudo muda rapidamente. Mudei de casa, mudei de país, mudei de vida, mudei de rumo. Se eu já não precisava escrever para viver no sentido figurativo da palavra, continuava precisando escrever para me manter viva, no sentido mais real da expressão. Foi através da minha escrita que consegui expurgar a dor imensa que me devorava por dentro. Foi através dos meus posts diários que consegui entender o que se passava na minha cabeça e no meu coração. Colocando tudo por escrito, documentado, para que as palavras e as sensações não ficassem perdidas no tempo.

A experiência que tenho vivido nos últimos anos é muito rica e muito real, mas com o passar do tempo, ela fica meio desbotada, menos nítida e esta foi uma das razões pelas quais quis escrever este blog: para que daqui a algum tempo, quando toda esta tormenta tiver passado, eu possa olhar para trás e perceber que tudo tem um fim e o sofrimento não é diferente. Mas também não quero me esquecer de nenhuma lição aprendida ao longo do caminho, pois cada um dos meus tombos se tornou aprendizado. Também não quero me esquecer das pessoas maravilhosas que cruzaram o meu caminho e do quanto me fizeram feliz.

Se no início meu desejo era que outros pacientes de câncer acompanhassem a minha história e pudessem perceber que mesmo depois de uma notícia terrível a vida continua e que vale muito a pena lutar por ela, hoje fico extremamente emocionada quando percebo que a minha história consegue tocar tantas outras pessoas que sequer tiveram contato com o câncer. Então percebo que consegui atingir meu maior objetivo que sempre foi não deixar a doença definir quem eu sou.


PS: Este blog é especial para Alana, Carol e Paula. Muito, muito, muito obrigada... vocês sabem bem o motivo.

De volta ao passado

Confesso que hoje acordei meio desanimada, mas foi só achar este vídeo que comecei a gargalhar.

Como a gente era brega nos anos 80! O figurino do clip é o máximo, a dancinha uma piada, mas até que a voz do Rick Astley é boa.

Em pensar que foi justo nos anos 80 que eu enfiei na cabeça que vinha morar nos EUA. Pois é, demorei mas cheguei. Entre idas e vindas, Virginia, New York City e Maryland, aqui estou.

Agora até me deu vontade de achar umas fotos minhas dos anos 80. Só para todo mundo gargalhar junto. Quero ver umas do Blake também -- típico garoto americano, de mullet e brinco.

Mas por enquanto é só. Tenho que dar uma saída agora. Desejem-me sorte.

March 19, 2008

Em Defesa da Comida



Está aí o próximo livro da minha lista. Com tanta coisa errada no mundo de hoje, coma água cheia de aspirina e antidepressivos e a carne contaminada espalhada por todo o país, de repente as pessoas começaram a se questionar sobre o que estão ingerindo, entã está todo mundo falando neste livro por aqui.

Ainda não li, mas estou curiosa. A premissa por si só já é interessante. Retirei o recho abaixo do site do autor, um jornalista americano que escreve sobre alimentação há mais de 20 anos e já recebeu vários prêmios por seu estilo investigativo.

"Comida. Existe aos montes por aí e todos amamos comê-la. Então por que alguém precisa defendê-la?

Porque a maior parte do que consumimos hoje não é comida, e a forma como a consumimos -- no carro, na frente da TV, consumimos "substâncias comestíveis que parecem comida" -- não mais produtos da natureza mas da ciência alimentar. Muitos vêm embalados por promessas de saúde que deveriam ser nossa primeira pista de os mesmo são qualquer coisa menos saudáveis. Na chamada dieta ocidental, comida foi substituída por nutrientes, e bom senso por confusão. O resultado é o que Michael Pollan chama de paradoxo americano: Quanto mais nos preocupamos com nutrição, menos saudável parecemos nos tornar.


Acho que o chamado paradoxo americano virou um problema mundial, já que a obesidade e outros problemas relativos à alimentação aumentam em proporções alarmantes.

Não sei se o livro já foi lançado no Brasil, mas vale a pena procurar. Vou comprar o meu aqui e depois digo para vocês o que achei.

Tudo tem uma razão de ser



Por mais duro que seja aceitar uma má notícia, sempre digo a mim mesma que nada acontece por acaso. São as rejeições e obstáculos de hoje que nos transformam em pessoas melhores e que nos trazem as vitórias de amanhã. Meio cliché, não é? Mas é ma mais pura verdade. Somos meras obras em construção.

Hoje aceito esta conjectura com uma certa serenidade, mas nem sempre fui assim. Durante anos e anos vivi em busca da perfeição e dentro de mim cultivava a ilusão de que a vida seria mais ou menos como uma operação matemática: se cumprisse todas as etapas com sucesso, chegaria certamente ao fim da equação. Por algum motivo, achava que havia um mapa para felicidade a ser encontrado e se cumprisse meu papel, teria acesso a ele.

Para mim, tudo na vida era preto ou branco, não havia espaço algum para matizes de cinza ou nuances de cor. Havia o certo e havia o errado, nunca o intermediário. Minhas convicções eram sempre certas e absolutas.

Até que num piscar de olhos tudo mudou. Num milésimo de segundo todos os meus sonhos estavam ameaçados ali, bem naquela sala escura e fria, assim que a médica encontrou o primeiro tumor no meu fígado.

Melhor ou pior, minha vida nunca mais foi a mesma. Naquele momento perdi a inocência e a arrogância inerentes a qualquer jovem saudável. Ganhei uma visão mais ampla e mais generosa não só do mundo, mas de mim mesma. Se as perdas foram instantâneas, os ganhos foram acontecendo mais lentamente e exigiram mais esforço, mas ao mesmo tempo me abriram as portas para um universo completamente diferente e fascinante, que jamais me aventuraria a conhecer se não viesse a fazer parte dele.

Foram justamente as dificuldades que me fizeram uma pessoa diferente. Foram as minhas limitações que me fizeram mergulhar fundo em mim mesma e querer mudar tantas coisas a meu respeito. Do meu senso de humor à minha alimentação, tudo passou por uma transformação.

Se a minha vida tivesse sido a vida que eu tinha imaginado, livre de imprevistos ou obstáculos, talvez a tivesse vivido na mais pura ignorância. Talvez não tivesse vivido metade das alegrias que vivi, conhecido um décimo das pessoas fascinantes que cruzaram o meu caminho ou aprendido um milésimo das lições que tenho aprendido nos últimos anos.

Tenho plena consciência de que não sou perfeita, nem nunca serei, não importa o quanto me esforce. Mas aos poucos tento não me revoltar com as pedras que encontro no meu caminho. Certos dias tal tarefa me parece impossível, mas então procuro me lembrar de quão rica minha experiência se tornou depois que a minha vida tomou um novo rumo. É muito complicado aceitar uma condição que me foi imposta, mas convivendo com tanta gente que vive dilemas parecidos com aos meus, aprendi que a vida é feita de escolhas. Não podemos escolher os nossos problemas, mas podemos escolher o que fazemos com eles.

Na palestra do Randy Pausch, que vou traduzir e postar aqui, ele coloca muito bem esta questão. Depois da sentença de morte que recebeu, todos esperavam que ele fosse desabar. Obviamente ele tem seus dias bons e ruins, mas a escolha dele já foi feita: entre ser o Tigre e o Burrinho (Eeyore), Andy preferiu aceitar o papel do Tigre. Eu também. Confesso que tenho meus dias de Eeyore, mas nada que um bom banho não espante.

Durante estes últimos meses, dois dos meus piores pesadelos se tornaram realidade:
* o câncer voltou a mostrar a sua cara
* fiquei sem trabalhar de novo, ou seja, tenho muito tempo para pensar...

Mas sabem o que descobri? Que nem o câncer nem o trabalho definem quem eu sou. Muito embora estas difíceis experiências contribuam ainda mais para construir meu caráter, elas não afetam o meu âmago, pois sou muito maior que um, ou dois, ou três tumores no fígado e um emprego bacana. Eu sou do tamanho do Tigre e ponto final.

March 18, 2008

Randy Pausch - Campanha do PanCAN



Este vídeo é de emocionar qualquer um. É uma versão reduzida da palestra que Randy deu em Carnegie Mellon, a "Última Aula", que o tornou mundialmente famoso. (O texto da "'Ultima Aula" é muito longo, passei quase duas horas sentada aqui no computador contendo, sem muito sucesso, as lágrimas, mas não tirei meu olhos da tela um instante sequer.) Este vídeo é curto e faz parte da campanha para pesquisa relativa ao câncer de pâncreas.

São depoimentos como este que fazem toda a diferença. Quando disse que o câncer de fígado precisava de uma celebridade, foi exatamente isto que eu tinha em mente. Alguém que possa levar nossa mensagem, alguém que possa convencer o público em geral de que há uma real necessidade de pesquisas, de investimento, de cérebros a serviço desta causa.

Uma das frases que mais me marcaram durante a minha jornada foi dita por um pneumologista que me acompanhou durante a minha primeira cirurgia. Sim, tive muitas complicações, inclusive derrame pleural. Sim, os médicos tiveram que fazer várias intervenções para retirar o líquido que se alojara na minha pleura. Depois de duas sessões com a agulha, retirando mais ou menos meio litro de cada vez, chegaram à conclusão de que seria melhor usar um catéter que foi colocado de forma cirúrgica. E lá fui eu pro centro cirúrgico de novo! Só neste procedimento, foram retirandos cerca de quatro litros da minha pleura. Mais ou menos duas garrafas de Big Coke.

Mas voltando ao médico, o nome dele era Renato e ele era simplesmente um amor. Ainda jovem, não tinha a arrogância nem a frieza de alguns médicos mais velhos e conversava com os pacientes de igual para igual. Foi ele então que me disse que eu era uma menina de sorte, pois se meu caso tivesse acontecido apenas cinco anos antes, minhas chances eram ínfimas se existentes. Durante cinco anos a medicina tinha evoluído tanto, tantos novos instrumentos, novas técnicas, novas descobertas, que tudo conspirava a meu favor, tudo isso aumentava as minhas chances de sobrevivência. Tenho certeza que os médicos usaram tudo que estava ao alcance deles, pois meu caso foi dos mais complicados já vistos.

Cinco anos depois, infeliz ou felizmente pude comprovar a veracidade das palavras daquele médico. Já na sala de exames, via coisas que sequer poderiam ser pensadas cinco anos antes, testes minuciosos, avançados, que me davam mais e mais confiança para seguir em frente. Os médicos diziam o mesmo, que eu ia sentir a diferença de tudo que poderia ser feito nos dias de hoje em compração com a minha primeira cirurgia.

Os médicos estavam certos. A cirurgia apesar de muito complicada foi um imenso sucesso e a recuperação foi maravilhosa, graças a Deus e ao talento dos médicos, mas também graças às novas tecnologias que resultaram de novas pesquisas que só foram possíveis porque houve financiamento. Imaginem vocês quantas vidas seriam salvas a cada dia se este investimento aumentasse! Quanto sofrimento seria abreviado.

Tive sorte, muita sorte de ter acesso aos melhores médicos do Brasil e do mundo, mas sou absoluta exceção. A questão da saúde é muito mais séria e infelizmente 90% dos pacientes de câncer não tem a mesma sorte. Não tem a menor chance não só no Brasil mas muitas vezes não têm chance nos EUA, país que apesar de rico não tem um sistema de saúde universal. Tremendo paradoxo.

Quando vejo histórias como a do Randy Pausch, fico triste de saber que o mundo perde alguém de um talento e de um carisma fenomenais, mas fico feliz e orgulhosa ao ver que ele escolheu passar seus últimos dias aqui lutando não só pela própria vida, mas pela vida de milhares de vítimas de câncer. Chamo isto de nobreza de caráter.

Se vocês assistirem o vídeo vão notar que apesar do triste prognóstico, Randy tenta levar uma vida muito normal. Gosto da passagem onde ele diz que um paciente de câncer não tem que ser frágil ou incapacitado. É assim que me sinto e sempre me senti. Jamais me senti doente ou fraca, nem mesmo depois das cirurgias e adoro a cara de espanto quando as pessoas me vêem. Parecem ter dado de cara com um fantasma! Comentários como "você nem parece doente" já passaram a fazer parte da minha vida, mas chego achar graça. Primeiro, porque não estou doente; segundo, porque vaso ruim não quebra!!!

Estou pensando em traduzir a "Última Aula", a palestra que citei no início deste post. O texto é imenso mas lindo, então vou fazer uma votação aqui. Se a maioria do pessoal tiver interesse em assistir o vídeo e depois ler o texto em portugês, eu traduzo. Se o pessoal conseguir ler em inglês e achar desnecessário traduzir, eu posto o texto original aqui. De qualquer forma, vale muito a pena ler/ver a palestra.

March 17, 2008

Curry de Batata e Garbanzos

Ingredientes:
1 lata de garbanzos, sem água
1 xícara de cenouras picadas
1 xícara de batatas cozidas picadas
1 xícara de tomates picados
½ cubo de caldo Knorr
1 xícara de cebolinhas picads
1 colher de sopa de curry em pó
1/4 colher de chá de nutmeg
1/4 colher de sopa de gengibre em pó
sal & pimenta a gosto
arroz cozido
½ pacote de tofu seco
1 xícara de ervilhas

Preparo:
Numa frigideira grande, combine todos os ingredientes acima, exceto o arroz. Cozinhe até a cenoura ficar macia e sirva sobre arroz, de preferência basmati.

Desta vez vou ficar devendo as fotos, mas queria dividir mais esta receitinha superfácil com vocês.

Esta foi uma adaptação de uma receita encontrada no http://vegweb.com, outro blog vegano bem legal que achei no maravilhoso e superinformativo blog da Andréa http://brazilnut-nyc.blogspot.com"

PS: A minha intimidade com a cozinha é tanta que só agora me dei conta que garbanzo em português é chamado de grão-de-bico. Será que é isso mesmo? Tem algum mestre cuca de plantão para tirar a dúvida???

Festa Pós-CTI




Alguém vai acreditar se eu disser que as fotos lá de cima foi tiradas minutos após a minha honrosa saída do CTI?

Pois é verdade. Depois de menos de 48 horas no CTI claro e arejado do Quinta D'Or, consegui ser transferida para um quarto imenso no sétimo andar. Acho que eles tiveram pacientes como eu em mente quando pensaram no conceito do quarto. A suíte tem uma ante-sala imensa com TV e varanda e o quanto é muito espaçoso, cheio de lugares para que meus zilhões de amigos pudessem sentar quando fossem me visitar.

Detesto hospital, mas tenho que admitir que o Quinta D'Or foi quase que um hotel de luxo para mim. Não quero voltar lá nem tão cedo, mas as recordações não foram de todo más. Aliás, sou eternamente grata à equipe de lá, pricipalmente à Dra. Alice e ao Dr. Rodrigo, que me mimaram demais.

Em pensar que somente dois dias depois de ser transferida para o quarto, deixei o hospital caminhando com meus próprios pés e com direto a parada na capela. Nem nas minhas previsões mais otimistas cheguei a cogitar esta hipótese. Mas para Deus nada é impossível.

Universos Paralelos

Seria possível viver várias vidas diferentes numa mesma existência? Não, meu quesitonamento não se refere à síndrome de personalidades múltiplas, mas sim à multiplicidade de papéis que assumimos durante a nossa vida.

Pausa para reflexão.

Tomemos como exemplo eu mesma, que há um ano me chamava Danielle Machado Duran e hoje me chamo Danielle Machado Duran Baron. Mas engana-se quem pensa que as mudanças ficaram restritas ao meu nome. Mal sabia eu que isso seria somente o começo.

Obviamente há um ano eu morava no Rio, mais precisamente na Barra, onde tinha meu apartamento convenientemente localizado no mesmo condomínio que os meus pais e a menos de um quarteirão da minha irmã. Tinha não só a família próxima, mas uma grande rede de amigos e uma infinidade de conveniências que só fui perceber o dia que não as tinha mais. Trabalhava full-time, jantava com a família e nos fins de semana pouco ficava em casa. Posso contar nos dedos de uma das mãos quantas vezes usei aquele fogão branco novinho em folha. O forno então jamais foi usado. Confesso que cozinha sempre me causou um medo horrível, um desconforto estranho.

Minha rotina era bem estressante. Naquela época, tinha muito mais dúvidas do que certezas e já havia me conformado com meu futuro de solteirona. Se a idéia costumava me dar calafrios quando tinha meus vinte e poucos anos, depois de chegar aos trinta, relaxei: "o que tiver que ser será", pensava. "Se não estiver no meu destino casar e ter filhos, vou tentar ser feliz de outra forma." Este era o meu mantra. Não fazia mais sentido continuar minha busca frenética por alguém que talvez sequer existisse.

Depois da minha primeira experiência com o câncer, mudei muito. Aprendi a me adaptar aos imprevistos, comecei a enxergar o mundo com outras lentes, de um modo mais amplo e até generoso. Por este mesmo motivo a idéia de ter limites me parecia desagradável demais. Apesar de ter sofrido horrores e de ostentar cicatrizes internas e externas capazes de mexer com qualquer um, me recusava a pensar em mim mesma como alguém diferente, alguém mais limitado, alguém doente. Fazia questão de viver a minha vida da forma mais abundante possível, estava determinada a viver cada um dos meus dias como se fosse o último.

Então aconteceu um daqueles momentos que mudam a nossa vida completamente: o Blake me pediu em casamento. Para quem em abril de 2005, durante o casamento da irmã mais nova, não tinha nenhuma perspectiva, ser pedida em casamento em agosto de 2006 é uma baita reviravolta. Apesar dos pesares então eu não seria mais a tia solteirona?! Meus irmãos já estavam até planejando a minha partilha e agora tudo mudava de figura!!! Por esta ninguém esperava. Muito menos eu. Brincadeiras à parte, aquela situação era no mínimo insólita e muito, muito, muito feliz.

Como uma das grandes lições que aprendi com o câncer foi viver o momento, aceitei o pedido depois de uma breve reflexão. "Se eu decidir não me casar com o Blake como vou me sentir daqui a 20 ou 30 anos? Vou conseguir viver em paz com o peso da minha decisão?" Quando cheguei a conclusão que jamais iria me perdoar se tivesse deixado aquela chance escapar, aceitei o pedido na hora! Isso tudo deve ter levado uns 10 segundos.

Quando aceitei me casar com o Blake, sabia exatamente o que aquela mudança significaria para mim. Não era só a mudança geográfica -- sim estaria deixando o Rio e me mudando para Maryland -- mas estaria deixando a vida de mulher independente, solteira e urbana para abraçar a vida de casada com tudo que este adjetivo traz. Mas afinal de que adiantaria liberdade se ela vinha acompanhada de solidão? Preferi rever meus conceitos.

O processo continua. A cada dia que passa revejo mais um conceito que há pouco tempo me parecia absurdo. Hoje além de casada, morando numa cidade pequena, aos poucos assumindo meu papel de dona-de-casa, me arriscando uma vez ou outra na cozinha, mudando a minha alimentação e o modo como vejo pessoas diferentes de mim, pois hoje já não sou quem eu era um ano atrás.

Nestes últimos meses, descobri vários universos paralelos:
  • o universo dos pacientes de câncer e seus familiares, que tiram força e fé só Deus sabe de onde;
  • o universo dos "health nuts" ou fanáticos por saúde, que de fanáticos muitas vezes não têm nada, apenas se propõem a ver a questão da alimentação de uma forma diferente;
  • o universo dos jovens recém-casados que têm muita decisões a tomar e muitos sonhos e a vida toda pela frente;
  • o universo das esposas estrangeiras que abandonam tudo para viver uma história de amor num país diferente e distante;
  • o unverso country de gente que trocou a vida corrida na cidade por mais paz longe dela;
  • o universo dos voluntários, que se dedicam de corpo e alma a uma causa muitas vezes sem ter qualquer ligação óbvia com ela.
São tantos os mundos onde circulo que me pergunto que tipo de pessoa sou e aos poucos vou tentando me descobrir. A cada momento enxergo dentro de mim mesma uma nova faceta que até bem pouco tempo me era desconhecida ou estava sepultada no fundo da minha alma. E aos poucos também vou tentando encontrar a paz dentro de mim mesma para que eu possa circular com a mesmo desembaraço entre todos estes universos diferentes sem o medo de me perder.

March 16, 2008

Convite Bilíngüe




Este foi o convite do nosso casamento. Vou ver se consigo tirar umas fotos para mostrar melhor como ficou o produto final. Nestas páginas escaneadas não dá para perceber a gramatura do papel, o relevo francês que foi impresso num papel mais fino e como ele parecia um livrinho. O envelope também tinha um detalhe diferente no fecho. Enfim, ficou simples e clássico do jeito que eu queria.

A Balança & Eu

Esta semana fez um mês que começamos nossa "dieta maluca". O que parecia um desafio imenso no início acabou se tornando uma outra aventura memorável. E o que parecia restrito e sem graça tornou-se uma descoberta fascinante.

Várias vezes havia flertado com a possibilidade de mudar minha dieta radicalmente, pois durante a maior parte da minha vida lutei bravamente contra a balança sem muito sucesso. Tentei todas as dietas de moda e mais algumas, fui a todos os "médicos" badalados no Rio de Janeiro em busca da dieta ideal. Tomei vários "remedinhos", também conhecidos como "bombas para emagrecer", aquelas cápsulas "inofensivas" carregadas de anfetamina, diuréticos, hormônio para tireóide, e sei lá mais o que. Fui escrava destas drogas durante anos.

Logo eu, que sempre fui completamente contra a qualquer tipo de droga e me orgulho cada vez que digo que jamais cheguei perto de um cigarro de maconha. Ao contrário da maioria dos adolescentes, nunca cedi à pressão dos amigos, achava de não precisava de coisa nenhuma para relaxar ou me divertir. Isso era coisa pra gente fraca. E eu sempre fui forte. Ou pelo menos achava que era.

Já para me sentir magra valia tudo, ou quase tudo. Minha relação com peso era meu calcanhar de Aquiles, sempre soube disso. Comecei a fazer ballet aos seis ou sete anos justo por causa do meu peso! Sempre fui uma criança fofinha, mas peocupada com as conseqüências de tanta fofura no meu futuro, minha mãe me matriculou numa academia de ballet. Ela dizia que eu faria uma boa atividade física ao mesmo tempo que aprenderia uma dança que tornaria meus movimentos mais graciosos.

Ela só não contava que eu fosse me apaixonar completamente pela dança. Em pouco tempo, minha vida se resumia a ela. Aulas de manhã, aulas à noite e ensaios no fim de semana. Dietas e mais dietas começaram dali: nada de Coca-Cola, sucos sem açúcar e adoçante no meu Nescau. Obviamente emagreci bastante, mas não o suficiente para me tornar uma bailarina profissional. Tive aí minha primeira grande desilusão. Entendi que apesar da minha enorme dedicação e esforço hercúleo, jamais seria a bailarina que eu queria ser pelo simples motivo de são possuir os atributos físicos necessários para o papel. Olhando as fotos hoje, me acho bem magra, mas na época me via uma baleia toda vez que me olhava no espelho. De acordo com a minha professora, meu pé não era bom o suficiente, meus saltos não eram altos o suficiente, minha perna não era fina o suficiente. Em compensação a minha disciplina e a minha determinação tinham me levado até longe demais, pois sem nenhum dos atributos óbvios eu estava ali, uma menina ainda, na companhia de ballet semi-profissional. Entretanto, muito cedo, do alto dos meus treze anos, tinha entendido que nada importava, que eu jamais seria a bailarina que sonhava um dia ser.

Desanimada com as perspectivas medíocres, tempos depois abandonei o ballet, que ao meu ver já tinha me abandonado há muito tempo, ou melhor, que nunca tinha me aceito. Foi ali que pela primeira vez me vi abatida, pela primeira vez na vida fiquei deprimida e comecei a entender que teria que me reinventar. Aos treze ou catorze anos tinha que deixar todos os meus sonhos de lado e começar a pensar em outros. Mal sabia eu que o talento adquirido ali, a habilidade de mudar de foco e de estratégia rapidamente, seria exigido muitas outras vezes durante a minha vida.

March 15, 2008

Aventura

Sei que o foco deste blog se tornou a minha experiência ao superar o câncer pela segunda vez. Se a minha vida já tinha mudado 90% depois da primeira cirurgia em 2002, depois da segunda, agora em 2008, virou de cabeça para baixo. Este últimos cinco anos têm sido de pura adrenalina.

Depois da minha primeira cirurgia, mudei o meu modo de encarar o mundo, abri meus horizontes, revi meus conceitos e preconceitos e me tornei uma pessoa mais feliz. Tinha convicção de que a pancada tinha sido forte o suficiente e sempre rezava para que Deus não me deixasse esquecer tudo o que tinha passado. O sofrimento, como muita gente sabe, é a forma mais dura de aprendizado e, de um certo modo, de purificação. Ao mesmo tempo que pedia a Deus que me desse saúde e me poupasse de outra experiência terrível como aquela, pedia a Ele que não me deixasse esquecer do quanto havia sofrido, implorava a Ele que o susto da pancada ficasse comigo para sempre. (Eu sei, sou muito esquisita.)

Quando cheguei aqui nos EUA, depois de quase cinco anos de cirurgia, foi que comecei a pensar na forma como tinha enfrentado a notícia. Se acontecesse de novo, o que faria de diferente? Comecei também a pensar em registrar meus pensamentos e talvez os depoimentos de outras pessoas afetadas pelo problema, mas meu maior obstáculo era o tempo. Fazia cinco anos que tinha passado por aquilo tudo, e por mais marcante que uma experiência destas possa ser, o tempo apaga muita coisa, as cores ficam meio desbotadas e o depoimento perde um pouco de impacto.

Então aos poucos fui engavetando o projeto inicial, ou ao menos adaptando a proposta para a minha situação. Meu objetivo era duplo: queria usar minha narrativa como uma forma de catarse e ao mesmo tempo queria documentar a minha caminhada, para que outros pacientes de câncer não tivessem que passar pelo que passei. Ouvia muitas histórias terríveis; muitos finais catastróficos. As histórias dos sobreviventes não chegavam até mim, ficavam perdidas no meio do caminho, talvez porque os sobreviventes estivessem mais preocupados em seguir suas vidas e sepultar o sofrimento do que relembrar o que passaram e inspirar outras pessoas.

Entendo perfeitamente este dilema, pois volta e meia me vejo pensando esta questão. Tem dias que acordo pronta a colocar um ponto final em tudo isso e viver a minha vida como se nada tivesse acontecido. Outros dias acordo ciente de que tenho esta missão de contar a minha história para que outros que atravessam momentos difíceis saibam que podem vencer. Lembro muito bem de como ficava feliz toda vida que via a Patricia Pillar ou a Ana Maria Braga, depois que elas se curaram. Nunca fui fã da Ana Maria, mas depois da doença, passei a ter um respeito imenso por ela, que enfrentou toda a batalha com uma dignidade impressionante. Ela hoje nem precisa falar nada sobre a doença, basta que a vejamos lá na telinha sorridente para saber que ela é uma vencedora.

Não sou Ana Maria Braga, então preciso falar. Preciso dizer que qualquer um pode lutar pela vida. Não escolhemos adoecer, mas podemos escolher ser felizes enquanto nos resta tempo. Às vezes isto pode parecer uma tarefa impossível. Sorrir antes de ter uma agulha enorme perfurando sua veia frágil e já endurecida não é para qualquer um. Quem consegue mostrar-se dócil e simpático depois de uma exaustiva sessão de quimioterapia? Ou manifestar satisfação depois de passar um temporada no CTI? Sei que tudo isso parece impossível, mas temos que entender que ainda estamos vivos e tentar fazer nossa estada aqui neste planeta o melhor possível. Muitas vezes é difícil não se revoltar com um prognóstico destes, mas mais uma vez a escolha é nossa: preferimos viver o resto dos nossos dias (que podem ser muitos ou muito poucos) amargurados ou preferimos aproveitar ao máximo nossa passagem por aqui?

A Kris Carr, autora de Crazy Sexy Cancer, não gosta de chamar o câncer de batalha, pois isto implica que alguém vai sair perdendo e ela prefere não pensar que pode ser ela. Então a Kris se refere à caminhada dela desde 2003, quando descobriu a doença, como uma aventura. Concordo com ela. É uma aventura ou uma viagem que eu certamente não teria escolhido, mas tenho que admitir que teve efeitos maravilhosos sobre mim. O câncer não foi nem nunca será um presente, pois jamais pensaria em dar este tipo de coisa para ninguém, mas é uma aventura sim. É uma viagem de auto-conhecimento que poucos têm a chance de fazer. Não sei bem se é um provilégio, mas com ela aprendi que a fazer várias limonadas com os limões azedos que me são lançados. Espero sinceramente que já tenha digerido a parte mais amarga, pois estou mais que pronta para saborear dias mais doces. Como sempre quis ter uma vida nada ordinária, então só me resta apertar o cinto de segurança

March 14, 2008

Contrato de Casamento

Outro dia, uma amiga me escreveu um email muito bacana, logo depois da minha cirurgia, no qual falava da importância do amor. Ela estava lendo um livro e disse que tinha se sentido tocada por uma passagem em especial, então resolveu transcrever o trecho para mim.

Ao ler a tal passagem, meus olhos encheram-se de lágrimas. Não tinha feito nada parecido no meu casamento, mas talvez me arrependa um pouco. Acho os votos católicos lindíssimos, mas talvez tivesse acrescentado um algo especial. Eu e Blake fizemos os votos mais tradicionais possíveis, seguindo todas as regras e rituais da Igreja Católica, como foi de minha vontade. Mas se tivesse que escrever meus votos, acho que faria algo bem parecido.

Está aí, como vamos comemorar nosso primeiro aniversário de casamento em menos de duas semanas, vou pensar no que escreveria se voltasse no tempo. Certamente não tiraria a parte que fala "na saúde e na doença", até porque esta parte já foi cumprida. Colocaria também algo sobre manter o senso de humor, pois os preparativos do nosso casamento foram enlouquecedores: o casamento civil por procuração, a papelada do visto e do green card, o casamento misto na Igreja Católica entre um católico e um não católico, os convidados vindos dos EUA e da Europa e a logística exigida, a mudança para os EUA, a cirurgia do Blake... Enfim, tivemos tantos obstáculos, que a minha cirurgia só foi a cereja no topo do bolo!

Mas enquanto não escrevo os meus novos votos, deixo estes aqui embaixo, simples e belíssimos. Então em homenagem a todos os casais que tiveram que lutar e superar muitos obstáculos para ficar juntos, resolvi traduzir o contrato de casamento entre Daniel e Mariane Pearl. Daniel, como alguns devem lembrar, foi o repórter do Wall Street Journal morto pela Al Qaeda no Paquistão. Triste fim para algo que parecia tão belo. O contrato é tão bacana que merece ser lido e repetido muitas vezes:

Contrato de Casamento


"Prometemos envelhecer juntos, enquanto mantemos um ao outro jovens, preservando nosso senso de humor, compartilhando amor e segredos"

"Prometemos descobrir juntos novas coisas, lugares e pessoas, e ver nossa vida a dois como uma obra literária."

"Prometemos dividir nossa felicidade com amigos e parentes."

"Prometemos não deixar que o dinheiro, a falta dele ou a passagem do tempo nos modifique."

"Prometemos os dois guardar a felicidade do outro como se fosse a nossa própria, apoiar a criatividade do outro, e sempre manter a fé na força do nosso amor."

Tradução livre de A Mighty Heart, página 49

Daffodil Days...ou Dias de Narciso




O narciso é a primeira flor da primavera, um símbolo de esperança, renovação, e para a American Cancer Society, a promessa de que um dia o mundo estará livre do câncer.

É por isso que hoje vou vender flores no shopping aqui perto. Logo eu, que detesto vender qualquer coisa, vou ficar lá na barraquinha de flores, roadeada de narcisos, pois acredito que já perdemos tempo demais e que esta batalha precisa ser vencida e logo.

Não podemos deixar que a cada ano milhões de pessoas, entre idosos, adultos, jovens e crianças percam suas vidas para uma doença tão covarde, que ataca sorrateiramente e não poupa ninguém. Precisamos de mais pesquisa, de mais interesse, de mais dinheiro. O câncer não pára. Nem nós.

Vou fazer a minha parte e lutar até o final. Quem sabe os meus netos ou, se Deus quiser, os meus filhos não vão saber o significado da palavra incurável?


March 13, 2008

Encontro com Isabel Allende

Respondendo a pergunta da Fê França, resolvi contar um pouquinho do meu encontro com uma das minhas autoras preferidas, a chilena Isabel Allende.

A primeira vez que tive contato com o trabalho dela foi -- pasmem -- durante o último ano de faculdade, aqui nos Estados Unidos. Estava terminando o bacharelado em Relações Internacionais, com foco na América Latina, e obviamente tive que ler muita coisa durante o curso. Um dos livros de leitura obrigatória era A Casa dos Espíritos. Li o livro em um dia, escrevi meu paper em poucas horas, apresentei o trabalho e fiquei viciada no trabalho da Isabel Allende para sempre...ou quase.

Claro que o estilo dela lembrava muito o estilo do Gabriel García Marquez, afinal trata-se de realismo fantástico, mas a narrativa dela é mais leve e mais fácil de ler. Dali para frente li todos os livros lançados até aquela data e depois fui comprando os novos assim que chegavam às livrarias. Tenho livros dela em inglês, espanhol, portugês e francês. Dependendo de onde estivesse, comprava e lia o livro na hora.

Paula foi sem dúvida uma das obras mais lindas que li. Um relato sincero em forma de despedida para a filha que perece ali de uma doença raríssima. Isabel escreveu o livro enquanto acompanhava a filha Paula num hospital na Espanha. Não consigo imaginar nada mais triste do que uma mãe aguardar a morte de uma filha que até pouquíssimo tempo era perfeitamente saudável.

Lendo aquele livro, senti uma conexão imensa com a autora, especialmente quando ela fala sobre seu amor pela leitura e seus questionamentos sobre o jornalismo. O diálogo com Pablo Neruda é inesquecível. Foi naquele momento que Isabel entendeu que deveria se aventurar no mundo da ficção. Quem ainda não leu o livro, não deve perder tempo.

Pouco depois de ler o livro, mudei para Nova York, onde fiz mestrado em...jornalismo!!! Enquanto estudava full-time, fazia muito freela para revistas brasileiras, principalmente as femininas. Escrevi várias matérias para a Cláudia e outras revistas da Abril. Escrevia sobre tendências mas também fazia muita matéria "mundo-cão", com um toque feminino, é verdade, mas falávamos de drogas, gravidez na adolescência, pedofilia, etc... Então, uma vez ou outra, eu conseguia emplacar uma matéria mais levinha sobre o "hair stylist" da Madonna ou os restaurantes mais fashion de Manhattan.

Um dia fiquei sabendo que ninguém menos que Isabel Allende faria uma noite de autógrafos na Barnes & Noble pertinho da minha casa. Não acreditei!!! Será que conseguiria realizar meu sonho de entrevistá-la para uma revista brasileira? Ela certamente iria "se conectar" comigo, afinal eu também era novinha (tinha vinte e pouquinhos anos) e estava começando minha carreira de repórter numa revista feminina latino-americana, assim como ela na década de 70.

Esperei semanas para o tal dia. Chegei cedo para pegar um lugar bem na frente e fiquei esperando minha "ídolo" chegar. Alguns minutos, depois vejo uma figura pequena, cercada de uma grande entourage se aproximando do tablado. Não tive dúvidas , era ela!

Segundo o programa, primeiro a autora leria alguns trechos de seu livro mais recente, Afrodite, depois ia falar um pouco sobre sua obra e por último responder a perguntas. O livro era esteticamente lindo, mas tive uma enorme decepção ao folheá-lo: não tinha nehuma história, nenhum conteúdo. Não passava de um livro de receitas pseudo-eróticas metido a engraçadinho, uma egotrip sem tamanho da autora.

Assim que Isabel começou a falar, senti meu coração apertar... Sabe quando a voz não combina com a pessoa, e pior, quando o conteúdo das palavras fica muito aquém do esperado? Foi exatamente o que senti. Minha autora preferida, esta intelectual latino-americana que tanto admirava, estava ali posando de "latina exótica" para gringo ver. O sotaque, as palavras, ela parecia uma J-Lo de meia-idade, com um acento mais carregado. Tudo ali soava tão artificial! Ela se esforçava tanto para agradar a platéia gringa, nem parecia dona de uma passado semi-revolucionário, muito pelo contrário, parecia preocupada em escondê-lo.

Mas decidi que não poderia julgá-la sem antes falar com ela. Fiquei esperando a fila diminuir e me dirigi até ela, com meia dúzia de livros para autografar. Tinha comprado o lançamento, mas obviamente tinha trazido alguns mais antigos comigo. Vocês acham que ela olhou para minha cara? Perguntou meu nome? Nada! Só assinou e colocou uma florzinha no final. Ela não desistia mesmo de ser "fofa", apesar de não se esforçar nem um pouco para ser simpática.

Como o tempo era escasso resolvi fazer meu "elevator pitch", ou seja, em poucos segundos fiz meu pedido, expliquei que era brasileira e repórter, etc, etc, achando que ela fosse simpatizar comigo, mas de nada adiantou. Ela simplesmente respondeu: "Minha agente está ali na porta. Fale com ela." Disse isso com uma frieza nórdica.

Não sou o tipo ultra-sensível que se acha mais importante do que a maioria dos mortais -- afinal morei muito tempo em Nova York e apredi a ser bem durona e pé no chão -- mas sempre achei que por trás daquelas palavras lindas naqueles livros mágicos havia uma pessoa sensível e acessível. Me enganei redondamente. Claro que entendo que ela deveria estar exausta e louca de vontade de sair daquele lugar, mas só ali entendi que a voz naqueles livros é muito dissonante na pessoal real que estava ali na minha frente e foi difícil não me decepcionar.

Nem me lembro se falei com a tal agente ou não. Só sei que a minha vontade de saber mais sobre a tal Isabel Allende acabou ali. A culpa não era dela -- disso eu sempre soube -- mas minha, por ter criado uma personagem irreal. Como diria a minha mãe, os ídolos são de barro. Naquele momento entendi exatamente o que esta frase queria dizer. A "Isabel Allende" tinha se despedaçado ali naquela livraria nova-iorquina.

Saí de lá cheia de livros autografados e com a impressão de que não passavam de pedaços de papel sem sentido. Depois do "encontro" e da leitura de Afrodite, prometi a mim mesma boicotar a escritora chilena, que tinha virado casaca depois de ter casado com um gringo e se mudado para Sausalito, Califórnia.

O tempo passou, acabei comprando A Filha da Fortuna. O livro é interessante, mas a voz da Isabel Allende nunca mais foi a mesma para mim. Perdeu o encanto.