November 27, 2012

Dois - parte dois

Dez anos mais tarde, agora em 2002, fazia mais ou menos um ano que tinha voltado ao Brasil. Depois de uma longa temporada nos EUA, entre a Virginia e Nova York, e com dois diplomas americanos embaixo do braço e alguma experiência profissional no exterior, me sentia às vezes mais americana que brasileira. Mas a parte pior da adaptação estava passando, eu havia engrenado um MBA no Rio e o trabalho era legal.

Se por uma parte era ótimo estar em casa, ao lado da família, revendo os amigos, indo à praia toda semana, por outro lado era meio complicada a sensação de me sentir uma estranha dentro do meu próprio ninho. Mas sempre achei que levava um jeitinho, do também escorpiano Drummond, para ser gauche na vida, então não posso dizer que estava surpresa. Na esperança – ou seria desespero? – de me conhecer/entender melhor, comecei a fazer psicanálise. Duas vezes por semana passava pela experiência um tanto quanto sui generis de me deitar no divã de costas para a analista para falar de assuntos que muitas vezes me incomodavam. Mas nunca tive medo de enfrentar situações desconfortáveis e, no final, certamente saí ganhando. O que eu não sabia porém é que tudo que estava me acontecendo serviria para me preparar para o que ainda estava por vir.

Olhando para trás, tudo fica muito claro, mas quando se está ocupada vivendo o dia a dia, fica difícil imagimar como todas aquelas pecinhas vão se encaixando para fazer sentido lá no final. Quando saí de Nova York queria apenas me dar um prazo para decidir o que fazer: não me desfiz do meu apartamento no West Village, não fiz mudança e continuei trabalhando remotamente. (O motivo inicial da minha mudança foi justamente a troca de emprego e transferência do meu H1B,visto de trabalho nos EUA, para uma outra empresa, o que me obrigava a passar este período de transição fora do país.)

Tudo correu praticamente como planejado, mas no meio do caminho, em meados de 2001, surgiu meio que do nada e através de uma amiga próxima uma proposta de emprego muito bacana no Rio. Embora não soubesse que estava gravemente doente, algo me dizia que tinha chegado a hora de passar uma longa temporada em casa. Como toda decisão para mim é muito difícil, depois de pensar muito, e até pelo fato da proposta de trabalho ser tão diferente, resolvi sublocar meu apartamento em Manhattan e me dar um prazo de seis meses no Rio para cuidar da vida.

Os seis meses se passaram, as coisas foram entrando nos eixos e eu resolvi então aumentar o prazo para um ano. Tudo ia bem, fora uma anemia que me deixava meio fraca de vez em quando. Não fraca o suficiente para me fazer faltar ao trabalho ou deixar de sair no fim de semana, mas como já fazia mais de um ano que me via nesta condição, resolvi investigar. Mais uma vez, a minha curiosidade valeu a pena. Pensando bem, daquela vez, a minha curiosidade me salvou. Perdi a conta de quantos médicos me viram – pelo menos uns 10 no Brasil, além de outros tantos que já tinham me visto em Nova York – e nada de diagnóstico. Mas eu queria uma resposta.

Até que ouvi falar num médico ortomolecular que tinha uma dieta maravilhosa e resolvi me consultar. Desta vez, não para investigar a minha anemia, mas para perder uns três quilinhos que me incomodavam. Como já imaginava, o médico disse que não faria nada sem antes ver meus exames, então saí do consultório com uma lista enorme. Dias depois, o resultado. Não sou médica nem sou “metida à médica”. Não me automedico, não receito nem aspirina aos outros, mas não sou analfabeta. Ao abrir o envelope com os resultados dos exames de sangue, percebi que havia algo muito errado. Várias taxas mostravam diferenças estratosféricas entre os meus valores e os valores desejáveis. Na mesma hora liguei para o médico, que estava de férias em Miami.

Sem saber bem o que fazer, voltei a contatar a hematologista, que desta vez pareceu muito assustada quando me viu. Me encaminhou para uma gastro, que me indicou uma ultra que só poderia ser realizada por uma médica no Rio de Janeiro. Sorte a minha, esta médica era amiga da minha família. Na mesma hora, meus pais ligaram para ela e no dia seguinte, estava eu aguardando o meu destino, naquela sala de ultrassom, um ambiente até então estranho, mas que – mal sabia eu – se tornaria muito familiar para mim.

E o resto desta história vocês já sabem: tumor, cirurgia, CTI, hospital, casa, mais hospital, químio, trabalho, casa, mais químio, trabalho, casa...e a vida que segue. Mais o que fica é a transformação, é a oportunidade de poder ver o mundo sob um ângulo diferente, de sentir-me envolta por uma corrente do bem, por poder me conectar com algo muito maior do que eu mesma.

O ano de 2002 foi inegavelmente difícil para mim e para todos ao meu redor, mas são tantas lições aprendidas que me sinto extremamente grata e até mesmo privilegiada por ter passado por uma situação tão delicada com tão pouca idade. Aprendi muito e, melhor, tive e ainda tenho tempo para poder usufruir um pouco deste aprendizado.

Como diz uma amiga, que enfrentou um linfoma com uma serenidade absurda (coisa que eu seria incapaz de fazer), o grande desafio agora é conseguir manter vivo o efeito da pancada, aquela que dói lá no fundo e que deixa a gente meio tonta e cheia de questionamentos. Não quero a dor da doença, mas quero levar comigo para sempre o que aprendi com ela, a habilidade de enxergar o que realmente vale a pena. O único problema é que a rotina e também o tempo – ah este tempo – teimam em querer apagar as tais lembranças, e volta e meia tenho que escrever textos como este que me fazem reviver momentos importantes e me forçam a focar no que realmente interessa.

November 9, 2012

Dois -- parte um

Não me considero uma pessoa supersticiosa. Tenho algumas manias (quem não as tem?), tenho fé, mas acho que sou muito desligada para me apegar a rituais e a superstições. Mas outro dia, refletindo e pensando que este ano tem sido sem dúvida um ano de grandes desafios e dificuldades, me dei conta que em anos terminados em 2 a minha vida sofre uma grande reviravolta.

Obviamente, era nova demais para me dar conta do que aconteceu na minha vida nos idos de 1982...fora derrota do Brasil na Copa para a Itália... Mas dez anos depois, aconteceria algo que ia mudar a minha vida para sempre. 

Em 1992, consegui realizar meu sonho: recebi uma das 18 bolsas de estudo concedidas pelo governo americano a estudantes brasileiros de graduação. É difícil acreditar, mas este tinha sido meu objetivo de vida desde a minha primeira viagem para a Disney, aos 13 anos! Cabeça de adolescente é mesmo incrível.

Só que o meu sonho, logo no início, acabou tendo sabor de pesadelo. Na minha cabeça de adolescente deslumbrada, vida de bolsista na Virginia deveria ser bem parecida com a rotina dos personagens do Barrados no Baile, ou Beverly Hills 91210, um dos meus programas favoritos na época: todo mundo bonito, todo mundo dirigindo carrão, programação intensa, várias atividades e aventuras.

A realidade, no entanto, não poderia ser mais diferente já que meu novo lar era uma faculdade só para mulheres localizada numa região carinhosamente chamada de Bible Belt. E a minha nova cidade era conhecida nacionalmente por ser reduto de um certo Jerry Falwell, fundador de uma megachurch e da Liberty University. Para resumir esta história longa -- e como imagino que a maioria dos leitores jamais vai passar por Lynchburg, Virginia -- para quem achou que ia fazer parte do elenco de Barrados no Baile, acabei virando personagem de Footloose!  Sem Kevin Bacon, é claro.

Acrecente-se a isto tudo o fato da maioridade americana ser de 21 anos -- eu tinha 18 quando vim para cá -- o que tornava a possibilidade de alguma vida social praticamente inviável. Beber nunca foi meu forte -- detesto cerveja -- mas sempre gostei de sair e de dançar e estava cansada de fazer isto no Rio. Na Virginia, tudo era muito diferente do que eu havia imaginado -- nenhum glamour, pouca diversão e uma galera que não tinha nada a ver comigo. Além disto, eu era a primeira aluna brasileira a por os pés na universidade, que estava tentando diversificar o corpo discente, e como tal era uma ave raríssima. Claro que quando me viram pela primeira vez, as recrutadoras ficaram admiradas com o "tom claro da minha pele," mas aí já era tarde demais...a bolsa já era minha! Me disseram que esperavam alguém mais bronzeado e de cabelo ondulado -- e acabaram comigo. Incrível pensar que nunca tinham visto a minha foto, mas é bom levar em consideração que isto tudo aconteceu praticamente numa época pré-Internet.

E apesar da decepção daqueles que achavam que eu ia "dar um pouquinho de cor" à faculdade, comecei a sentir que se as diferenças verdadeiras tinham pouco a ver com o tom da minha pele ou a textura dos meus cabelos. Foi durante a minha temporada em Lynchburg que descobri acidentalmente que para a grande maioria eu não era considerada branca. A minha surpresa foi tanta e a minha indagação tão incessante que me pediram para escrever um artigo para o jornal da faculdade. Assunto: raça e etnia na America! Imaginem...desde quando sou autoridade nisso?! E do alto da sabediria dos meus 18 ou 19 anos...Mas o que nem me passava pela cabeça era que esta questão me acompanharia durante 20 anos, e hoje a minha perspectiva é bem diferente do que era em 1992 -- isto é assunto para outro post!

Com tantas coisas acontecendo de forma tão diferente do que havia imaginado, o início da minha temporada na faculdade foi tão acidentado a ponto de ter que pedir uma audiência com a decana. Na reunião, diplomática como sempre, chamei todo mundo de embusteiro e pedi o cancelamento da minha matrícula e a volta imediata ao meu país de origem. Já estava praticamente de malas prontas para voltar para a UFRJ quando a decana me pediu que esperasse um mês antes de tomar uma decisão. Como que num passe de mágica, neste mês conheci a minha orientadora, um pessoa fantástica, que me desafiou de uma forma tão brilhante quanto sutil...e acabei ficando por lá e me formando. E -- para minha sorte -- nunca mais fui a mesma.