Depois de conversar com o Todd algumas vezes, cheguei à conclusão que queria me engajar numa campanha de doação de medula óssea. Todd, Monica e alguns outros tiveram a sorte de ao menos encontrar um doador compatível, condição imprescindível para se pensar em cura. Mas ao contrário do que acontece normalmente, no caso deles, o doador não foi encontrado dentro da família, mas no cadastro do banco de medulas do governo americano.
Conversando com o próprio Todd, ele me disse que ser branco, no caso dele, tinha sido uma tremenda sorte. "Me disseram que o banco de medula é 70% de brancos, então ser branquelo, descendente de irlandeses e italianos pode ter salvo a minha vida," ele sorriu.
Não imaginava que ele tinha tanta razão. Ao contatar o banco de medula óssea para me informar sobre como fazer uma doação, fiquei boquiaberta. As chances de um negro NÃO fazer um transplante de medula que pode salvar sua vida são de 83%!!! Ou seja, mais de 8 entre 10 negros portadores de leucemia, cuja única esperança de cura é um transplante, vão morrer na fila.
O motivo é muito simples: não há doadores suficientes! Esta porcentagem cai para 61% se o candidato é branco e 55% se o paciente é latino. (Nunca fiquei tão feliz de pertencer ao grupo!) O negócio é tão desesperador que o Governo Americano cobra 52 dólares dos brancos que querem doar medula (loucura!!!) para cobrir o custo dos exames laboratoriais e as minorias doam de graça! Então a tarefa ficou ainda mais árdua, pois se encontrar alguém disposto a doar já não fosse difícil o suficiente, ainda vamos ter que perguntar a pessoa se ela não tem um ancestral indígena, negro ou asiático. Se a resposta for negativa, ainda vamos ter que pedir para que ela desembolse 52 doletas, que convenhamos, é um bom dinheiro.
Como o meu grupo no Ulman Fund é bem homogêneo e predominantemente branco, pensei em tentar diversificar um pouco. Caso contrário, minha única esperança seriam patrocinadores, afinal a doação de americanos brancos acaba saindo caríssima. Nada melhor então do que espalhar a idéia aqui no escritório, já que a maioria das pessoas faz parte de grupos minoritários e afinal de contas trabalhamos no
Centro de Disparidades em Saúde. Melhor lugar para este tipo de campanha não há! Ao menos em teoria.
Conversei com algumas colegas sobre fazem campanha nas igrejas negras, mas não vi muito interesse. Então ontem informalmente, levantei o assunto com outra colega aqui, uma pessoa superesclarecida que tem doutorado em Saúde Pública de uma das melhores universidades americanas e se diz idealista e apaixonada pelo tema. Ah, ela é negra. Quando estava no meio do meu "discurso", ela delicadamente me interrompeu e disse "Já escutei falar que dói muito." Respondi na hora, "Eu sei que pode ser um pouco disconfortável, mas conheço gente que diz que não dói nada, que é só uma anestesia local, como a de dentista." Ela não se fez de rogada e rebateu, "Morro de medo de agulha e jamais doaria minha medula, meu sangue ou qualquer coisa parecida."
Achei que não tivesse escutado bem. "Como assim? O teste é só uma raspada do lado de dentro da bochecha, não tem sangue. Só depois, se eles acharem que você pode ser compatível, pedem um exame de sangue," expliquei. Ela continuou: "Está falando com a pessoa errada. Nem pensar." Eu, ainda incrédula: "Mas se você soubesse que poderia salvar a vida de alguém, do seu semelhante? Nem assim? Eu faria o que fosse possível, mas infelizmente por conta do meu histórico de saúde não posso doar nada," insisti. "Não. De jeito nenhum, eu não. Seu caso é diferente porque você já passou por maus bocados, então ficou mais sensível. Acho que para fazer uma campanha destas você deve contatar o departamento de saúde da sua cidade. O seu círculo de amizades não é grande o suficiente," ela explicou categórica, prontamente passando a bola pra quem? Advinhou, cara-pálida, para o Governo, aquele "ser" abstrato e insensível que habita palácios e vive no luxo.
Agora a minha incredulidade se transformava em raiva. "Sim, de repente seria legal, pois não tenho tantos amigos negros assim que moram perto de mim e esta população, da qual você faz parte, é a que mais necessita," e terminei meus argumentos ali, sabendo que estava perdendo meu tempo. Ela ainda me disse que por motivos históricos a população negra não confiava no governo e no sistema de saúde e por isto não doava nem sangue, nem órgãoes nem medula! E eu pensei com meus botões, mas decidi guardar as palavras para mim mesma, "Quem sai perdendo são vocês, que não querem se ajudar. Mas fazer o que?" Se alguém, que estudou anos e anos nas melhores escolas às custas do Governo e do contribuinte, não consegue enxergar algo tão cristalino, o que podemos esperar do pobre coitado que escuta falar que picada de agulha dói demais e tirar a medula pode até matar? Mas de uma coisa tenho certeza: um gesto pequeno para salvar a vida do próximo nunca matou ninguém, já a ignorância....
Ela saiu da minha sala e eu sentei na minha mesa, ainda atônita e muito triste. Se é praticamente impossível convencer alguém que tem PhD(!!!) em Saúde Pública(!!!) e trabalha com Saúde de Minorias a se cadastrar no banco de medula óssea, como vamos conseguir que a população menos esclarecida participe deste tipo de campanha?
Nestas horas é difícil segurar a língua e não chamar meio mundo de hipócrita! Vestir terninho e salto alto e sentar num escritório com ar condicionado brincando de fazer política é fácil. Arregaçar as mangas e fazer a diferença, seja doando sangue ou meramente passando um cotonete na bochecha, ah isto é muito difícil.
Eu ODEIO gente que tem espírito de burocrata, que faz seu feijão com arroz e vai embora pra casa se linchando pro mundo. Mas admito que é atitude normal e até certo ponto aceitável em algumas áreas, mas em SAÚDE PÚBLICA este tipo de postura é no mínimo indecente! Jogar toda a responsabilidade em cima do sistema e ficar brincando de escrever leis e projetos deve ser muito bom pro ego, mas pros pacientes que realmente lutam pela vida, sinto muito dizer, isto faz muito pouca ou nenhuma diferença.
Tenho tentado não me sentir diferente nem superior a ninguém quando o assunto é saúde mas a cada dia me convenço mais que para estar nesta área, a gente tem que ser desprendido de medos e vaidades e infelizmente para chegar neste ponto, ou o sujeito é daqueles escolhidos por Deus para realizar esta missão, ou então já levou muito na cabeça para aprender a ser gente.
Claro que antes de passar pelos perrengues que passei, também dizia que não conseguia tirar sangue. (Meu medo era tanto que fiquei mais de 10 anos sem fazer hemograma e só fui fazer quando a vaidade falou mais forte e cismei de fazer a lipo. Meu prêmio: uma anemia enorme causada por um mega-tumor.) Mas antes de enfrentar a doença eu sequer tinha interesse na área de saúde -- era ignorante e feliz na minha ignorância -- e muito menos me escondia atrás de PhDs e organizações não-governamentais que muitas vezes só servem para embelezar o currículo e massagear o ego de uns poucos.
Nestas horas não tem como não ficar decepcionada. Mas ainda acredito no ser humano e creio que para cada egoísta ignorante com ou sem PhD, existe um idealista desprendido, com ou sem titulação acadêmica.
Como diz a minha avó, "casa de ferreiro, espeto de pau."