Meu amigo Todd partiu hoje por volta das 5.35 da manhã, horário de Baltimore. Fui dormir ontem pensando se ainda conseguiria vê-lo com vida no dia seguinte. Por volta das 7.30 de hoje, tive a resposta. Não fui pega de surpresa.
Ontem, ao vê-lo, percebi que seu tempo por aqui se esgotaria rapidamente. Seus olhos já estavam cristalizados, ele respirava com muita dificuldade e a cor da sua pela denunciava icterícia. Ao entrar no quarto, senti que teria que me despedir dele naquele instante.
Pedi licença a Carmi, disse algumas coisas no ouvido dele e depois dei-lhe um beijo na testa. Nesta hora a pressão dele subiu um pouco e as máquinas começaram a apitar. Gosto de pensar que ele sentiu minha presença lá e meu carinho por ele. Logo depois, o médico entrou no quarto e eu saí. Saí sabendo que tinha visto meu amigo vivo pela última vez.
A verdade é que se ele tomou seu último fôlego esta manhã, sua alma já vinha se preparando para fazer a passagem há algum tempo. Quase três semanas atrás, percebi o primeiro sinal disto.
Numa sexta-feira, chuvosa como o dia de hoje, fui vê-lo no CTI. Carmi não estava lá, nem a Elizabeth. Eu entrei achando que ia ficar pouco, senti que ele estava cansado. O Todd era meio calado e eu sempre falava mais do que ele, então não quis forçar. Mas naquele dia, tive a nítida impressão de que ele queria desabafar, então fiquei mais um pouco.
Apesar do seu estado de saúde, Todd não gostava de falar em doença e nem na sua luta diária que já durava cinco anos. Ele gostava de falar de esporte, da família, de comentar as notícias diárias e de me contar sobre os planos para o futuro. Não naquele dia. O olhar dele parecia perdido. Ele olhava em volta do quarto, via as máquinas e tantos monitores ligados e tentava encontrar sentido naquilo tudo. “Eles disseram que vão fazer a biópsia no meu pulmão na segunda,” Todd me contou. “Vamos torcer para que eles descubram o problema,” argumentei. Mas ele logo rebateu: “São três furos, um procedimento difícil. Não queria ter que passar por isto, mas se é inevitável...”ele mesmo se conformou e continuou “Cada vez que eles me fazem passar por um destes procedimentos me sinto como um cavalo de corrida. Dou o melhor de mim, saio exausto e eles sempre voltam de mãos vazias. Nunca descobrem o que há de errado comigo. E cada vez que vou para o centro cirúrgico é como se tirassem mais e mais as minhas forças,” ele concluiu. “Mas eles vão descobrir desta vez,” menti para ele, mesmo sem saber. “E você não pode desistir, por favor. Não desista,” pedi a ele, que me olhou com um sorriso de cansaço, dizendo “Tudo bem, não vou desistir.” Desconversei um pouco, a Carmi chegou e me despedi dele, como de hábito: “Fica bem aí e aguenta firme. A gente se vê na segunda!” Ele sorriu e acenou.
Esta foi sem dúvida a conversa mais profunda que tive com o Todd. Saí de lá com o coração pesado e liguei direto para a Elizabeth. Dali para frente a situação só se agravou e nos últimos dias o quadro se tornou irreversível. Nunca pensei que fosse participar tão ativamente do processo da partida dele. Nunca pensei que fosse me apegar tanto ao Todd e à família dele, mas não me arrependo. Aprendi muito com eles durante os últimos meses, acho que foi um curso intensivo de “como ser gente de verdade”. Com o Todd, vi que nosso filósofo estava certo, gentileza gera gentileza. O Todd era um amor com todo mundo e todo mundo gostava muito dele. (As enfermeiras estavam chorando quando cheguei lá hoje de manhã). Aprendi que o que vale mesmo é o que a gente tem dentro. Mesmo que a aparência atual dele fosse muito diferente do jovem louro, alto e de olhos azuis da foto na porta do quarto, o espírito do Todd era o mesmo, inquebrável. Com a Carmi aprendi que há dignidade até no sofrimento. Esta mulher acompanhou a via crucis do filho por nove meses sem sequer reclamar e sempre agradecia a menor demonstração de carinho ou de atenção. A Angie e o Chris eram só carinho com o irmão caçula.
Nos últimos dias, a Carmi colocou uma foto do Todd antes da doença na porta do quarto. “Quero que as pessoas lembrem dele como ele realmente era. Quero que elas saibam que meu filho tinha uma vida feliz antes disto tudo começar,” ela me explicou. Volta e meia via enfermeiras paradas na porta do quarto hipnotizadas... “Que lindo,” elas suspiravam. Hoje uma delas pediu para ficar com uma foto do Todd, pois ele vai fazer muita falta. Achei o gesto bonito e a Carmi ficou feliz ao dar a foto para ela.
Amanhã vou levar a Angie para o aeroporto. No fim de semana vamos ajudar a Carmi a arrumar as coisas. O Todd terá um funeral com honras militares em Iowa, onde a família mora. Ele merece todas as honras do mundo, foi valente até o final.
8 comments:
Dani, sinto muito e desejo que ele descanse em paz.
Às vezes, quando uma pessoa parte, pensamos em tudo o que ela teria pela frente para realizar... mas devemos nos lembrar do que ela foi e fez enquanto esteve aqui, e fazer com que essa lembrança feliz seja o que permaneça em nossa mente.
Um beijo.
:(
Eu entro aqui todo dia meio que esperando esse post.. nao esperando de querendo, mas meio que prevendo sabe... No fim, acho que acabar com esse sofrimento foi a melhor coisa. Tenho absoluta certeza de que esse menino sera muito feliz pra onde quer q ele va. E deixara uma marca positiva em todos q com ele conviveram.
beijo Dani.
olá minha amiga!
Quanto tempo não escrevo!!
tenho trabalhado muito, enfrentado tantas lutas, mas não deixo de ler seu blog e é sempre uma grande tristeza ver alguém partir tão cedo..Já estava acostumada a ter notícias do Todd por vc e lamentei muitop esta partida. è o que vc diz, era uma partida esperada, mas mesmo assim dói...
Resta-nos orar para que ele chegue a um lugar sem dor, sem máquinas, sem sofrimento e que sua mãe seja consoloda pelo pensamento de que ele não partiu, descansou...
um grande beijo pra vc e logo envio noticias por e mail.
Querida Dani
Estou muito triste com a partida do Todd, mesmo sem conhece-lo aprendi a gostar dele. Nao há explicacoes nem perguntas, só uma certeza, ele era um anjo que vc sentirá sempre presente, mesmo longe, aquela pessoa que o tempo nunca apaga e que a distancia nao o afastará de nossos coracoes.
Diga isso a mae dele.
Com amor,
MOM
Sinto muito
Que tristeza Dani. Eu nem conheço o Todd, mas estava pensando muito nele por causa do que você tem escrito, inclusive hoje eu acordei pensando nele. Fico triste que ele se foi, a medicina apesar de ter evoluído tanto, em muitos casos ainda está na sua infância. Triste que uma pessoa ótima não está mais aqui, por tudo que podia ser e não foi, e pela família que vai sentir muita falta dele. Abraço apertado.
Perdi um irmão com leucemia aos 14 anos (salvo engano, a do mesmo tipo que acometeu o Todd (leucema aguda linfóide). De um dia para o outro,o garoto forte, esportista e saudável passou do campo de futebol para uma cama de hospital, necessitando de transfusão de sangue para suportar o tratamento que viria pela frente - quimio e radioterapia. Era maio de 1986. O primeiro médico profetizou: 3 meses! Nos mudamos para Belo Horizonte em busca de maiores recursos. Os médicos de lá o sentenciaram da mesma forma: "mãe, vamos tentar..." Foi lá, dentro do maior hospital da redondeza que passamos a conviver com crianças e adolecentes portadores de vários tipos de câncer. Eu e minha mãe acompanhávamos meu irmão nas sessões de quimioterapia. Na radio, infelizmente, não podíamos ficar com ele. Queríamos aproveitar cada minuto desses 3 meses... De fato, é um teste diário à nossa fé, vermos crianças chegando - no início do tratamento - ainda cheias de alegria, balançando seus cachinhos, muitas vezes brincando na sala de espera, enquanto não chegava a sua vez de receber o "remedinho vermelho". Os dias iam se passando, os cabelinhos iam caindo... e elas começavam a chegar de bonezinho, amarelinhas e cada vez mais quietinhas... a gente passava a conhecer cada uma delas pelo nome. Ficar sem ver alguma delas nos dias de tratamento, muitas vezes não significava que tinham mudado o dia da consulta. Cada encontro poderia ser o último. Foram exatos 3 meses de tratamento (junho, julho e agosto). A leucemia regrediu muito e ele foi liberado do tratamento, devendo retornar a Belo Horizonte em dezembro. Aguardamos ansiosamente meu pai vir nos buscar - ele continuava no Espírito Santo trabalhando e indo nos ver nos fins de semana. Chegou o dia de voltarmos pra casa. Depois da quimioterapia, com a imunidade muito baixa, uma gripe, isso mesmo, uma gripe foi suficiente para fazê-lo voltar ao hospital, já com as malas prontas pra voltar pra casa. Do quarto, direto ao CTI. Retornamos na data marcada, mas para nossa casa, somente eu, meu pai e minha mãe. Durante muito tempo fiquei indagando a Deus montes de "porques". Cheguei a me afastar dEle, por achar que Ele não ouvia nossas orações. Mas com o tempo, aprendi que Deus não é um gênio da lâmpada. Ele tem as razões dele, e como vc bem disse, Dani, não cabe a nós querer entender. Agora, que o elenco dele é de primeira, isso é. Meu pai nunca se recuperou da perda. Hoje, ele e meu irmão estão juntos lá no céu. Estou certa de que estão bem. Vou orar pela família do Todd. De certa forma, ele continuará no meio deles, e pelo que vi nos comentários do blog, vai passar a fazer parte da vida de muita gente. Tudo vai ficar bem...
Patricia,
Adorei ver você por aqui. Lindo o seu comentário. Sabia que seu irmão tinha lutado contra a leucemia, mas nunca imaginei que tivesse partido tão rápido. Você disse bem, Deus não é um gênio da lâmpada, mas é tão difícil entender isto às vezes. Procuro não questionar suas razões, mas a alma humana é inquieta e curiosa, então isto se torna um grande desafio. Admiro sua fé e sabedoria e assim como você, acredito que tudo vai ficar bem. Tanto o Todd quanto o seu irmão, assim como outros amigos meus, apesar do pouco tempo aqui, cumpriram a sau missão, tocando tantas vidas e deixando belas histórias que cabem a nós contar, preservando a memória de cada um deles.
Beijos e obrigada pela visita.
Fique com Deus.
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