February 20, 2009

O Desafio de Allison

"Oi Dani, tudo bem? Como você está? Já faz quanto tempo da sua última cirurgia?," Allison me pergunta.

"Estou ótima, já faz mais de um ano desde que operei. Estou perfeita. E você, Allison?," devolvo a pergunta para ela, que para, respira e responde.

"Fico muito feliz por você. Eu, Dani... Não vou tão bem assim. Acabaram-se os tratamentos. Não há mais opções para mim. Agora é uma questão de tempo," ela me responde de um modo estranhamente sereno.

Como a gente reage depois de ouvir uma reposta destas?, foi o que pensei na hora. O que dizer a uma jovem de trinta e poucos anos que se prepara para a morte? Ela está ali na minha frente. Penso rápido.

"Você já ouviu uma segunda opinião? Não há testes clínicos que você possa participar?," pergunto, temendo escutar a resposta dela.

"Já ouvi segunda e terceira opiniões. Já consultei os maiores especialistas aqui nos EUA. Além de Hopkins, já fui ao MD Andersen e ao Dana Farber. A conduta está correta. Não há nada a fazer. Os tumores crescem e a doença progride, nada pode detê-la. Preciso me preparar," ela me explica, num tom de voz doce, que depois venho a saber também é consequencia da doença. O câncer se espalhou para os pulmões e diminui a capacidade respiratória dela.

Estamos nós duas numa noite fria à beira da piscina, vendo o pessoal treinar para um triatlon. As únicas fora da piscina. As únicas sem roupa de banho. Confesso que nunca tive nenhuma intenção de nadar, mas o convite da Allison na noite anterior me pareceu irrecusável. Ela me pediu para conhecer o resto do pessoal do time deles. Disse que seria importante que eles soubessem que eu também sou o motivo que os leva a competir e a arrecadar fundos para pesquisas e tratamentos para jovens portadores de câncer. Eles me recebem de braços abertos e insistem para que me junte ao grupo na semana que vem.

"Ano que vem, talvez," é a minha resposta. Piscina? Eu nado com a cabeça para fora d'água! Fora que não tenho nem maiô! Mas a Allison me pede para fazer a caminhada de 5K no time dela, em abril. Ela diz que esta é a grande meta dela até lá. "Nem que seja na cadeira de rodas. Vou completar os 5K," ela afirma. Preciso arrecadar 500 dólares, logo eu, que detesto pedir dinheiro e nem vender sei, mas diante do pedido dela, isto é mero detalhe. Aceito o desafio. Vamos começar nossas caminhadas no parque semana que vem. A Allison acha que vai ser um rito de despedida dela. "Sei que não vai ser amanhã, mas também sei que não vou ver o próximo Natal," ela confessa e me convida para o que parece ser sua última festa de aniversário, mês que vem. "Meus pais vão me dar a festa de presente e não vai ser nada triste. Vai ser uma celebração da minha vida. Você tem que ir," me intima a nova amiga.

Pois é, fiz mais uma amiga que parece ter os dias contados. Desde já me preparo para dizer adeus a alguém forte, carismático e determinado. Tarefa difícil, mas que não delegaria a ninguém mais. Os últimos meses tem sido assim para mim: descubro pessoas fascinantes para perdê-las dentro de tão pouco tempo. Muita gente deve achar que sou masoquista, que deveria me preservar, manter uma certa distância de pessoas que não tiveram a mesma sorte do que eu. Será mesmo? Será que depois de tudo que foi me dado eu não posso estender a mão ao meu semelhante? Oferecer um ombro amigo ou mesmo rir junto deles? Mesmo que isso venha trazer sofrimento depois...não importa.

Confesso que a cada história que escuto sempre me pergunto, por que eles e não eu? Mas é claro que jamais terei a resposta. Não me interessa. Não quero saber quantos dias ou anos me restam, só quero ter certeza de ter vivido cada um intensamente. Quero ser a senhora do meu próprio destino. E por isto me permito me envolver com meu semelhante mesmo sabendo que a amizade tem data de validade. Não por conta de desentendimentos corriqueiros, mas porque meu/minha companheiro(a) de viagem vai partir. Mas isto torna a jornada mais intensa. Justamente por saber que lhes resta tão pouco tempo, estas pessoas me ensinaram e me ensinam demais, com suas palavras, mas acima de tudo com suas atitudes, com seus exemplos.

A Allison me conta que por muitos anos ficou presa na armadilha "trabalho=dinheiro", nesta equação perversa que não dá lugar ao prazer, à satisfação. Até que em 2007, pediu demissão do emprego e decidiu tomar as rédeas da própria vida. "Coloquei na cabeça que 2007 seria o ano da Ally, e foi. Foi muito difícil também, pois o câncer voltou, mas isto me fez ver que tinha tomado a decisão certa. Se não me resta muito a viver, o pouco que me resta tem que me dar prazer," ela me conta. Me explica também que tudo parece surreal, pois nos últimos dias, depois de ter parado os tratamentos que lhe deixavam fraca e indisposta, ela tem se sentido melhor, com mais energia.

Ela trabalha na Ulman Foundation e entre muitos projetos, ela está escrevendo um manual para jovens que já atingiram o estado terminal da doença. "Não existe nada que prepare o jovem para a morte, então vou usando a minha experiência para ajudar a outros que podem precisar deste apoio no futuro," ela diz. Allison já preparou seu enterro, seu testamento, e já deixou instruções do que quer que seja feito com o dinheiro da venda da sua casa (que deve financiar a universidade dos seus sobrinhos) e onde quer que a família espalhe suas cinzas.

"Semana passada tive uma conversa muito difícil, mas muito honesta com meus pais. Pela primeira vez, dividi com eles os meus planos. Descobri que eles tem uma sepultura num cemitério aqui onde eles querem depositar as minhas cinzas. Eles precisam de uma lápide. Eu não. Tenho alguns lugares que gostaria que as minhas cinzas fossem espalhadas. Então depois daquela conversa, chegamos a um acordo. Por mais triste que tenha sido esta discussão, ela foi necessária para todos nós. Agora sei que a minha vontade será respeitada e que meus pais estão cientes dela."

Ouvi as palavras dela e meu coração se encheu de um misto de admiração e tristeza. Então disse a ela as mesmas palavras que ouvi tantas vezes, e que muitas vezes me incomodaram tanto: "Você é forte, Allison, muito forte. Te admiro por isto." Ela sorriu e respondeu: "Eu tento. Tenho dias melhores que outros, mas vivo um dia de cada vez. Esta foi uma das primeiras vezes que falei sobre este assunto sem derramar uma lágrima. Acho que estou ficando boa nisto," ela emendou para descontrair. Incrível como alguém na situação dela ainda pensa em não me deixar sem graça ou triste.

E passamos mais alguns minutos falando de paz, de fé, de religião, de morte e de ressureição. Lembro que uma vez, durante um encontro de jovens (que eu detestava!), uma palestra me chamou atenção. Esta senhora dizia que a vida terrena era só uma preparação para vida eterna, junto ao nosso Pai. O "aqui e agora" seria uma espécie de gestação para o que realmente estaria por vir. Não me lembro muito mais do tal encontro a não ser que detestei o resto das atividades, mas a idéia da gestação como uma preparação para a vida eterna ficou comigo. E toda vez que penso em morte, procuro enxergá-la desta forma, como um parto, uma passagem.

Longe de mim estar preparada para tal. Como diz a minha amiga Carla, que depois de três anos, perdeu a mãe ano passado para um câncer no abdomen, "ninguém nunca vai estar". Por mais que tentemos, nada jamais vai nos preparar para a imensa saudade que vai ficar conosco para sempre. A verdade é que aquele buraco no peito nunca mais vai fechar. Só o tempo para atenuar a dor. Precisamos do luto, apesar do que nos dizem os anúncios e comerciais de TV, que nos empurram pílulas milagrosas e calmantes mágicos, nestas horas precisamos viver a tristeza, precisamos sentir. Faz parte da experiência humana. Por que negar?

Acho que sou romântica, pois penso que ter conhecido cada um destes meus amigos que se foram me tornou uma pessoa melhor. Aprendi tanto com todos eles em tão pouco tempo. Sinto que de alguma forma eles também estão vivos dentro de mim, pois nunca me esqueço de contar a história de coragem e de superação que cada um deles fez questão de dividir comigo. Levo um pouquinho da essência deles onde quer que eu vá. É a minha forma de homenageá-los e manter a memória deles viva de alguma forma. Por isto divido tanto a minha história quanto a história da Thalita, do Daniel, do Fellipe, do Sandro e de tantos outros jovens que se foram tão cedo e que hoje deixam o céu mais brilhante. Se o tempo que trocamos emails e telefonemas foi curto, o aprendizado vai ser eterno.

2 comments:

Daniela Freitas said...

Dani, que emocionante este relato!
Nem tem muito o que dizer! Só Deus mesmo para nos fazer entender, ou melhor, aceitar essas situações da vida.
Beijos!

Anonymous said...

Dani, lindo o que vc escreveu. Sumi esses dias, vim aqui e estou com lágrimas nos olhos. Nesse mundinho tão vil (sentimento de vazio pós 5 dias de folia no calor carioca :-) suas palavras são um bálsamo. Sim, eles continuam entre nós pelas suas lembranças, as histórias (como a da Thalita). A história da sua professora me remete ao Egito - os tesouros eram enterrados junto aos corpos enquanto durante a vida viviam com muito pouco pois acreditava-se que o melhor estava por vir! bjs, Cris