É claro que depois da segunda cirurgia mergulhei de cabeça neste mundo, ao mesmo tempo extremamente assustador mas inegavelmente fascinante. Li tudo que encontrei. Participei de todo o tipo de fórum online ou evento imaginável, contei a minha história a Deus e ao mundo e fui encontrando uma certa paz, já que a certeza de uma vida longe da doença jamais estará ao meu alcance. Mas aos poucos tenho aprendido a viver assim, tenho meus altos e baixos e com tempo espero que os altos durem cada vez mais.
Hoje, vejo que a doença e tudo que a cerca são uma parte de mim. O câncer foi algo que me moldou como ser humano, que definiu meus interesseses, que me mudou como pessoa. Continuo falando da minha experiência com o maior orgulho e meus olhos ainda se enchem de lágrimas quando me lembro da generosidade que encontrei, mas não tenho a mínima saudade dos dias do CTI, dos drenos e agulhas, do cheiro de hospital e dos leitos desconfortáveis. Se antes a doença era meu cartão de visitas, hoje ela parece ser uma nota de rodapé nas páginas da minha vida, onde pretendo que ela fique eternamente. Ela ainda está lá e merece atenção, merece crédito, mas não tem que estar no rótulo que envolve a minha existência.
Claro que meu engajamento não diminui nem um pouco; ele continua mais forte do que nunca, mas sinto que além do clubinho do câncer, tenho vontade de pertencer a outros grupos, de aprender com outras pessoas, de ter outras vivências. O medo de que de um dia para o outro a minha vida volte a ser sequestrada pelos tumores existe e é muito presente, mas não pode ser a única coisa a me mover. A doença, ou melhor, a experiência vivida através da doença, passa a ser uma parte de mim e não uma representação minha por inteiro.
E é por isto que vez ou outra me pergunto o que leva alguém a viver o câncer 24 por dia mesmo depois de estar curado. O que faz alguém querer encontrar pra sim um lugar no mundo do câncer (foi o que li num blog outro dia!) Não consigo entender muito bem este povo aqui que faz altas festas, recepções, cocktails regados a birita e fica discutindo as causas do câncer. Alô, álcool?! Será que alguém já pensou no assunto de verdade: álcool pode causar câncer!? É muito fácil discutir saúde pública bebericando apple martinis, dificil é tentar marcar uma sessão de químio quando não se tem plano de saúde! Mas este assunto é tão deprê, né? Será que tem gente mesmo que não tem plano ou pai rico?
Pois é este tipo de mentalidade que não consigo entender. Mais do que isto, não tenho a menor vontade de entender, pois não tenho a menor paciência pra gente deste tipo. Não preciso de bandeira específica para defender as causas que acredito. Não preciso de clubinho para me acompanhar nas rodadas de martini. Não preciso da aprovação de nenhum grupo para dizer o que penso. É por isto que de vez em quando eu até gosto da minha condição eterna de outsider. Como disse o poeta, "vai, vai ser gauche na vida." E eu até gosto...
Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
1 comment:
Oi Dani, voltei de NY... Estou infeliz, quero voltar para lá agora!
Vou colocar os meus e-mails em dia e depois o seu blog, ok?
Beijocas!
Post a Comment