Ontem depois de almoçar com a Elizabeth, decidi ver a Monica, pois já fazia mais de uma semana que não a visitava. Ao manifestar minha vontade, notei a Elizabeth um pouco reticente. “Vou lá visitá-la, mas você pode ficar bem à vontade se não quiser vê-la. Para falar a verdade, talvez seja melhor que você não vá. O nível de consciência dela é o mesmo do Todd nos últimos dias, ela está muito inchada, as crianças já foram avisadas, é questão de tempo. O quadro é muito grave e de certa forma chocante,” ela me explicou, talvez mais como amiga do que como assistente social.
Mas eu estava decidida. Ao chegar no CTI, vi o mesmo médico que uma vez explicava à Carmi sobre o estado terminal do Todd. Senti calafrios. Ele entrou no quarto para falar com o Antoine, marido da Monica e pai dos quatro filhos dela. Resolvi ficar do lado de fora. Às vezes me sinto no meio de um filme, um dramalhão daqueles, tipo Love Story. Logo eu, que pensava que tragédias assim só aconteciam na telona e só serviam para vender ingressos de cinema...
Assistindo aquela cena do outro lado da parede de vidro, tudo me parecia surreal. A Monica deitada inconsciente num leito de hospital, Antoine de pé conversando com o médico, fisionomias preocupadas, e a Elizabeth ao lado. Claro que não dava para ouvir nada além dos bipes de máquinas e passos apertados de enfermeiras e residentes, mas eu podia imaginar muito bem o teor da conversa. Ao ver o rosto da Monica inchado, os olhos semi-fechados e a boca um pouco ensanguentada não poderia esperar outra coisa. Infelizmente.
Um pouco antes, durante o almoço, Elizabeth e eu falávamos sobre a melhor forma de lidar com estes casos gravíssimos. Ela acha que a grande maioria dos pacientes transplantados não tem a menor idéia do que os aguarda, dos obstáculos a serem enfrentados e das reais chances de sobrevivência. Na opinião dela, os médicos não são francos o suficiente nestas horas e muitas vezes acabam privando o paciente e sua família de momentos importantíssimos nas horas finais.
“A Monica tem quatro filhos pequenos, será que alguém já pensou no futuro destas crianças? Não no bem estar imediato delas, mas que daqui a alguns anos elas vão se casar, vão se formar, vão ter filhos e provavelmente não terão a mãe ao seu lado? Será que a Monica não teria usado melhor os últimos meses dela para escrever cartas para eles, preparando memórias para um futuro no qual ela talvez não esteja presente? Será que não teria sido melhor para ela saber que seu tempo era tão limitado e assim poderia ter escolhido exatamente o que fazer com ele?, minha amiga indaga.
Mas eu não consigo responder. Talvez eu seja mesmo covarde, mais covarde que eu imaginava. Ela continua, “Ninguém quer falar da seriedade do caso ou das chances ínfimas do paciente porque ninguém se sente no direito de tirar a esperança do outro, pois há sempre milagres, casos inexplicáveis, mas vamos combinar que estes casos são as exceções e por isto são chamados milagres! Se acontecessem com todo mundo teriam outro nome! O problema é o modo como encaramos ‘esperança’. Você pode ter toda a esperança do mundo mesmo estando consciente da dificuldade da batalha a ser enfrentada, desta forma você pode fazer suas próprias escolhas. Tem gente que depois de entender a gravidade da doença e a agressividae do tratamento, simplesmente decide que não vai passar os últimos dias da vida intoxicado numa cama de hospital. Há outros, que mesmo cientes das dificuldades, vão para o tudo ou nada, por vontade própria. Assim é diferente, o sujeito tem a informação e faz a escolha,” ela me explica, logo depois se desculpando pelo discurso inflamado.
Entendo. Reflito. Ainda assim não consigo encontrar a resposta. Não sei, sinceramente, não sei. Não faço ideia do que teria feito se algum médico tivesse me dito que as minhas chances de sobreviver eram ínfimas. Para dizer a verdade, acho que prefiro não saber. O mais próximo que cheguei de ter esta informação técnica foi ao traduzir o laudo da minha biópsia da segunda cirurgia, uma experiência tão deprimente quanto assustadora. Prefiro não pensar no assunto.
Terminamos o almoço e a pergunta continua a me assombrar, assim como aquelas palavras que tive que traduzir para colocar no papel e entregar aos médicos de Johns Hopkins no início do ano passado. Nunca mais reli o documento. Espero nunca mais ter que fazê-lo.
É por estas e outras que escrevo este blog, me correspondo com tantos amigos e tento deixar registrado um pouco de mim de alguma forma. Para que nem eu mesma me esqueça de quem eu sou, só por precaução.
4 comments:
Nossa Dani, esse seu relato me lembra muito eu mesma logo que descobri a doença e ainda sabia muito pouco sobre ela(achava que tinha um ano, meses de vida), várias vezes me perguntava o quanto ainda viveria, se conseguiria pelo menos ouvir as primeiras palavras do meu filho Pedro que na época tinha apenas um ano, e como ficaria o Freddy que tinha seis. É muito triste, a gente acaba sofrendo por antecipação, muita coisa me passou pela cabeça, mas com certeza, gostaria de deixar a eles lembranças, cartas, que pudessem dar a eles a idéia de quem eu sou, de quem eu fui.
Um grande beijo e parabéns pela saobrinha!
Nossa toda vez que entro aqui fico comovida quando são esses posts mais sérios. Eu sou nutricionista da especialização do INCA, para mim é ótimo ver como vc seguiu em frente, além de ver o outro lado que nós, profissionais de saúde não vemos.
Bjks,
Bárbara
www.intimofeminino.blogspot.com
Dani,
É muito difícil decidir o que fazer, no meu caso, eu não pensei duas vezes, tive duas entrevistas assustadoras, acho que as piores da minha vida e sabia exatamente de tudo que ia passar, conversei com muita gente antes, não sei se isso foi bom ou ruim, porque todos se foram, acho que o instito de sobrevivencia fala mais alto e todo mundo decide fazer o TMO, até hoje não conheci ninguém que não tenha feito depois da famosa "conversinha" que os médicos em Curitiba costumam fazer.
Mas eu não tinha filhos, então não sei como reagiria se tivesse, acho que faria de toda forma, pensando em passar mais tempo com eles.
Acho que em um futuro não muito distante, o transplante de medula vai ser um procedimento ultrapassado, porque não é possível, a taxa de óbitos é muito alta.
Admiro cada vez mais você por sua coragem e desprendimento do próprio sofrimento para se dedicar aquem precisa.
Bjs
Acho, Dani, que as pessoas, no fundo, sempre têm esperança de vida. sempre. Por isso não se preparam para a morte. É tão natural, querida, somos seres humanos, né? Beijos.
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