Outro dia li num livro que "o câncer é como uma nota C num boletim que até então era impecável. O pior é que aquele "c" vai ficar no seu histórico pro resto da sua vida." Para mim, que sempre fui CDF, esta foi a melhor definição de como me sinto em relação à doença. Se fisicamente tudo que me restou dela foi uma cicatriz um tanto quanto sui-generis no abdome, a carga piscológica é bem mais pesada. Por mais que eu tente, não consigo me livrar dela totalmente. Não adianta, a gente jamais volta a encarar a vida da mesma forma, para pior ou para melhor, a mudança é permanente.
Estaria mentindo se dissesse que hoje não sinto mais medo do que sentia há dez anos. Hoje sei mais, me preocupo mais com o que pode ser. Mesmo que minhas escolhas conscientes apontem para o lado otimista, existe sempre o fantasminha nada camarada que volta e meia me assombra. Exames que fazem parte da rotina de qualquer um e que a maioria das pessoas nem pensa duas vezes ao fazer, me causam verdadeiros calafrios. Dizem que só o tempo para apagar, ou tornar as matizes hoje tão intensas, um pouco mais desbotadas. Também acreditei que o tempo fosse meu amigo, até que ele me deu uma rasteira, agora nem nele eu confio mais. Se não confio no tempo, só me resta acreditar em Deus e pedir para que ele prorrogue indefinidademente a minha estadia por aqui. Sei que a vida eterna deve ser ótima, um verdadeiro paraíso, mas ainda não me cansei do caos aqui debaixo.
Sábado, num evento do trabalho, ouvi duas palestras emocionantes. A primeira foi de uma repórter do Baltimore Sun, que durante meses acompanhou pacientes que tinham câncer de mama em estágio quatro (o último estágio da doença, dito incurável). Como não lhes restava nenhuma esperança, elas decidiram participar de um estudo sobre uma vacina experimental que talvez pudesse prorrogar suas vidas.
O estudo acabou ano passado e ainda não se tem resultados. Algumas pacientes já partiram e a certeza que se tem é que, pelo menos para elas, o tratamento não funcionou. Outras ainda estão por aqui, vivendo cada minuto de suas vidas na prorrogação, pois não se sabe quanto tempo lhes resta. (A expressão em inglês neste caso é perfeita, pois diz-se que elas estão "living on borrowed time", ou seja, vivendo em tempo emprestado, tempo que já não lhes pertence.)
O depoimento da repórter foi tocante e me impressionou a sinceridade dela ao admtir que, ao longo dos meses de tratamento, tinha infringido a regra número um do jornalismo ao se tornar parte da história. Esta linha é muito tênue e muitas vezes o profissional nem sempre é o ético e o humano. Fico feliz quando vejo que ainda há jornalistas humanos por aí.
O outro depoimento foi de uma das pacientes do mesmo estudo. Fiquei surpresa ao ver uma mulher jovem, muito bonita, de cabelos longos e cheia de vida se dirigindo ao palco. "Não, ela não pode estar doente, não tem nada de errado ali!," pensei. Mas era ela, jovem mãe de dois filhos, vivendo com câncer de mama, estágio quatro, metástese. (Metástese era a palavra que mais me assustava durante todo o meu período entre diagnóstico e tratamento. Metástese, como se sabe, é quando o câncer se espalha para outros órgãos do corpo, o que torna a cura mais difícil.)
A história de Darby não é tão diferente da de outros pacientes de câncer. Em 2004, ao descobrir uma forma agressiva de câncer de mama, optou por uma radical mastectomia dupla. Os médicos lhe asseguravam que apesar de ser a forma de tratamento mais drástica, também era a mais segura, pois previniria um recidiva em 99.9% dos casos. Valeria o sacrifício.
"Ótimo, vamos fazer tudo para que ele não volte," foi o pensamento de Darby, cujos filhos tinham 4 e 2 anos, na época. O tempo foi passando e a rotina foi voltando ao normal. A família mudou-se de Atlanta para um subúrbio de Baltimore e Darby decidiu que seria uma grande oportunidade de deixar a doença no passado. Fez bons amigos na nova cidade, mas não mencionou seu histórico. "Para que? Estou começando de novo!," foi a atutude dela.
Mas os recomeços não são sempre tão fáceis assim e meses depois Darby teve a pior notícia imaginável. A doença tinha voltado, mais forte do que nunca. Sim, ela era aquele 0.1% dos casos, aquela fatia tão ínfima do grupo que muitos custam a acreditar que existe. Infelizmente, as estatísticas não mentem e para os 99.9% de felizardos existem os 0.1% cuja sorte é questionável, e Darby estava no último grupo.
Sem ter muitas opções, Darby percebeu que se não poderia controlar a doença, controlaria sua própria vida: iria lutar até o final com todas as armas disponíveis. Tomou a difícil decisão de não se deixar morrer antes do tempo. E é o que tem feito a cada dia que levanta e leva as crianças para escola, faz compras ou sai com as amigas. Ela vive! Vive o hoje e reza para que o amanhã seja tão bom quanto.
A palestra de Darby estava marcada para o meio da tarde, mas ela pediu para que fosse antecipada para a parte da manhã. Darby tinha um vôo para pegar naquele sábado. Ela e o marido iriam celebrar o aniversário dele numa viagem de 10 dias para Israel. O sorriso dela, o ar jovial, o porte e a fala rápida não combinavam em nada com a imagem que eu tinha de um paciente de câncer terminal. Mas pensando bem, quem disse que o estágio de Darby é terminal? A doença pode estar em estágio avançado, mas não há traços evidentes. A alma continua intocada e a vontade de viver é óbvia. Já me disseram que a vida é um estágio termina, então só nos resta vivê-la.
Darby me fez lembrar o que Elizabeth Edwards, que também tem câncer de mama estágio quatro, diz em seu livro recém-lançado. Elizabeth diz que gostaria de ser lembrada como uma mulher que, quando o vento não soprava a seu favor (o que acontece muitas vezes), em vez de se revoltar, ela ajustava as suas velas e continuava a navegar.
A frase me fez lembrar o grande Fernando Pessoa que disse "Navegar é preciso, viver não é preciso". Sei que há muitas interpretações para o poema, mas para mim, não se trata da necessidade de viver ou navegar, e sim da precisão que pode existir na navegação, mas certamente inexiste na vida, onde não há mapas, rotas a serem percoridas ou mesmo certezas. Por mais estranho que possa parecer, a vida é inexoravelmente incerta.
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