May 7, 2009

Lilian

A voz dela é doce e o semblante tranquilo. Se não estivesse ela ligada a uma máquina e rodeada por enfermeiras e outros pacientes, jamais acreditaria que Lilian enfrenta mais uma sessão de quimioterapia no Centro de Câncer do Hospital da Universidade de Maryland. O marido, meu xará Danny, sempre a acompanha, mas prefere jogar poker no laptop a falar sobre cirurgias e doenças ou sobre assuntos de mulher. Elizabeth, minha amiga e assistente social que me apresenta a estes pacientes, me avisa de antemão que Danny não é muito de bate papo, mas volta e meia, para surpresa de Elizabeth, ele dá um pitaco na nossa conversa.

Lilian tem sempre um sorriso nos lábios e uma doçura extremamente difícil de se explicar em alguém que luta não contra um, mas dois tipos diferentes de câncer bem agressivos. Um é no intestino com metástese para o fígado e o outro (tumor neuroendócrino) começou no mesmo lugar mas é um tipo diferente, aparentemente causado por hormônios e stress. Nestas horas é que me sinto muito ignorante.. Onde já se viu dois tipos detumor diferentes num mesmo órgão?!

Mas nem os tumores, nem as biópsias, nem os tratamentos agressivos parecem tirar a doçura dela, que pode ser percebida no tom de voz, nos gestos, na escolha das palavras. Ela está determinada a vencer, mas tem a humildade de aceitar o que o destino lhe reserva. "Só me resta rezar para que a minha hora ainda não tenha chegado," ela explica com um sorriso tímido. "Por enquanto estou ocupada planejando a festa de dois anos do meu filho, em julho," ela suspira enquanto tira da carteira (Louis Vuitton legítima) fotos de um garotinho de cara redonda e cabelos cacheados.

Outro sonho de Lilian é conhecer o Brasil. Ela tem uma amiga que vai visitar o João de Deus há três anos e jura que as consultas com o médium/curandeiro/espiritualista tem ajudado muito. Lilian diz que além de conhecer João sonha em passar uns dias no Rio, mas quer fugir dos mosquitos! A amiga dela disse que tem época que eles estão por todos os lados em Brasília.

A simplicidade dela também assusta. Soube que ela é de uma das famílias mais ricas de Baltimore. Ela, o marido e o filhinho moravam em Miami, mas depois de descobrir a doença e de uma série de diagnósticos errados, optaram por voltar para casa e ela se trata no mesmo centro onde o pai foi tratado há dois anos. O pai de Lilian faleceu de câncer de pulmão na época do nascimento do filho dela. Ela diz que a cada visita,a acada exame tem uma enorme sensação de déjà-vu, mas que por mais duro que seja, prefere estar num lugar onde confia na equipe médica.

"Às vezes me pergunto se não é coisa demais para uma pessoa só," ela confessa. "Mas depois acabo entendendo que isto acontece e estas são as questões com as quais preciso lidar no momento. Não há tempo ou energia para questionamentos ou revolta," ela mesma conclui.

Apesar de só ter visto Lilian duas vezes (fomos apresentadas ontem), sinto uma enorme afeição por ela -- simpatia e empatia. Ela também emana uma energia muito boa e diz que se sente fisicamente muito bem, fato que ela credita a uma chá chamado Vitali-Tea. (Acho que além do chá milagroso existe uma dose enorme de resiliência e otimismo cauteloso dela.) O fato é que quando vou vê-la na unidade de tratamento me sinto como se tivesse batendo papo com uma amiga num salão de beleza. Parte de mim fica feliz por fazer com que horas tão difíceis passem mais rápido para ela. A outra parte sabe que estou fazendo um bem enorme a mim mesma ao sair do escritório um pouco durante o dia e conversar com alguém diferente.

E aos poucos, muito sutilmente, sinto que a minha direção na vida vai mudando de novo. Há alguns meses, tinha impresso todo o material e já ia dar entrada no processo de seleção de um programa de doutorado em administração, mas me bateu uma grande dúvida e chego aquestionar se negócios e transações comerciais e o mundo corporativo realmente tem algo a ver comigo. Se mais um diploma vai me fazer mais completa. Claro que ainda quero aproveitar esta grande oportunidade, mas provavelmente em outra direção. Não quero enveredar pelo caminho das políticas públicas pois não tenho nem tempo para blablablá nem paciência para lidar com o sistema e nem talento para fazer politicagem. Eu gosto de gente, mas gosto de lidar com indivíduos, não grupos. Se tiver que optar entre ajudar uma pessoa ou uma organização, não tenho nenhuma dúvida de onde está a minha lealdade.

Vou continuar a explorar as opções de doutorado, mas começo a achar que o mundo dos negócios pode não ser para mim.

É incrível como ao conhecer o outro, sempre descobrimos algo surpreendente sobre nós mesmos. Este post tinha toda a intenção de falar exclusivamente sobre a Lilian -- esta jovem mãe extremamente afável que conheci há tão pouco mas que parece fazer parte do meu círculo há tempos -- entretanto por algum estranho motivo acabei falando sobre mim. Acho que a cada vez que me disponho a conhecer e abrir meu coração para alguém, acabo abrindo alguma janelinha, até então oculta, dentro de mim.

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