June 29, 2008

Por que falo a verdade?

Uma das decisões mais difíceis que tive que tomar ao longo da doença foi ter que deixar o emprego que tinha acabado de começar. Não que eu amasse o meu trabalho (o que a longo prazo seria um problema, pois não consigo trabalhar se não estiver apaixonada pelo que faço), mas pelo fato de ter sido meu primeiro emprego aqui depois de zilhões de entrevistas e de muito procurar. O salário não era lá essas coisas, a rotina era muito monótona e o trânsito, bem o trânsito estava literalmente acabando comigo: três horas diárias no escuro engarrafada numa highway americana é a minha idéia de inferno. Mas era tudo o que eu tinha. Era meu primeiro degrau, a minha esperança de que um dia poderia alcançar algo melhor, mas que o primeiro passo estava dado.

Então quando soube da cirurgia, do tempo de recuperação e do adiamente do meu retorno a Maryland e de como seria a minha vida na volta ao lar, tive que tomar mais uma decisão difícil. Tentaria negociar com eles a minha permanência? Se optasse por fazer isso, só teria férias provavelmente em 2010 e teria que voltar imediatamente ao trabalho, num lugar pra lá de deprimente onde só há restaurantes de fast-food. A diretora e toda a equipe do instituto foram extremamente amáveis e deixaram claro que me apoiariam qualquer que fosse a minha decisão. Mas no fundo, acho que eles perferiam que eu me desligasse, devido a incerteza de tudo que tinha relação comigo. E se eu tivesse uma nova recorrência? E se eu precisasse me tratar de novo? Quantas vezes eu teria que ir ao médico?

Então depois conversar com os médicos e com a minha família, decidi que o melhor a fazer era me desligar o quanto antes para que a universidade pudesse começar a busca pelo meu substituto. Detesto a palavra "substituto" porque no fundo do meu ego inflado me vejo insubstituível. Como assim encontrar alguém como eu? Impossível! Mas orgulho foi algo que aprendi a engolir bem rápido ao longo destes meses. Liguei para lá e fui direto ao assunto. A diretora foi muito delicada, mas não pude deixar de perceber -- talvez tenha sido a minha imaginação -- um certo alívio no seu tom de voz.

Desliguei o telefone aos prantos, mas já estava feito. Outra coisa que aprendi com a doença foi não chorar sobre o leite derramado. Chorei muito até fazer a ligação, mas depois de comunicar a minha decisão só chorei duas vezes: imediatamente após desligar o telefone e quando cheguei em casa e vi minha carteirinha do seguro-saúde e meus contracheques em cima da mesa... Adeus independência, voltamos ao sistema de contenção de despesas. Foi bom enquanto durou.

Mas depois não chorei mais. Fiquei pensando no que o meu grande amigo e palhaço profissional Horácio tinha me dito assim que contei para ele do tumor em dezembro. "Não pode ser. Está tudo errado. Não é possível. Não estava no script. Não, peraí, tem que ter um motivo. Tem que ter... Já sei! É este emprego que você não está gostando. É a única peça solta. É isso! Só assim você vai ter um motivo mais que nobre para sair desta porcaria que você já não estava gostando mesmo. É isso, uma chance para você deixar este emprego sem maiores dramas."

E parecia que ele tinha achado o xis da questão. Por mais maluca que a idéia do Horácio tenha sido (aliás, ele só tem idéias malucas!) para mim fez todo o sentido naquela hora. Este tumor vai me dar a chance de sair do emprego que eu detesto de uma forma nobre e digna. Bingo! Tudo tem sempre um lado bom.

Para mim, a teoria doida do Horácio virou a verdade mais absoluta. O tumor, além de ser a chave que me libertaria da prisão de um trabalho monótono, também abriria meu mundo para coisas muito mais interessantes.

Assim que voltei para Maryland, minha ex-chefe me convidou para almoçar. Ela é mesmo um amor de pessoa. Conversamos bastante e ela disse que ficaria muito feliz se pudesse me ajudar. Me deu permissão para usá-la como referência e se colocou à disposição para o que eu precisasse. Conversamos bastante e perguntei a ela o que deveria dizer sobre a minha saída da universidade. Como eu havia pensado e como quase todo mundo havia sugerido, ela disse que eu jamais deveria mencionar o fato da doença. Concordei na hora, afinal que futuro empregador daria alguma chance a alguém que teve que se ausentar do trabalho por longos períodos por problemas de saúde graves? Todo mundo morre de pena, mas na hora H, business is business e ponto final. Eu sabia que ela estava certa, mas só tinha um problema, e um problema dos grandes: eu não sei mentir. Nunca soube, toda vez que tentei quando adolescente fui pega e vi logo que não era para mim. Não sei mentir. Odeio mentira. E omitir às vezes também não é opção para mim. Não sou boa atriz.

A cada entrevista eu ia tensa, rezando para ninguém me perguntar o motivo da minha passagem tão meteórica pelo meu último emprego. A meu favor havia meus dois últimos empregos onde fiquei por três anos em cada um, então menos terrível, mas explicar uma passagem de três meses (que na verdade, tirados os dois meses no Brasil, não somava mais que um mês) era bem complicado. Mas não tinha opção. Ou pelo menos não achava que tinha.

Quando fui a entrevista na Escola de Medicina fiquei em choque. Achei que tinha me candidatado a uma vaga para fazer relações públicas para o Hospital Universitário, mas ao chegar na sala de espera reparei que tudo a minha volta falava de câncer. Por mais estranho que possa parecer, me senti em casa. Foi como se uma voz estivesse falando comigo "Bem-vinda. Aqui é o seu lugar."

A entrevista foi ótima e tive a mesma sensação que tinha experimentado nos meus dois últimos empregos. Durante a entrevista me ficou muito claro que ninguém poderia fazer aquele trabalho melhor do que eu. O emprego era meu, soubessem os entrevistadores ou não. Saí de lá muito confiante. Dias depois me ligaram pendindo as minhas referências, mas meses e meses se passaram e não tive mais notícias.

Muito estranho, pensei, mas o que tiver que ser será. Acabei aceitando um emprego de repórter para manter a minha cabeça ocupada e receber uns trocadinhos no fim do mês até que algo melhor aparecesse. Não choro mais sobre o leite derramado.

Três meses depois da entrevista inicial, o pessoal da Escola de Medicina da Universidade de Maryland me telefona de novo perguntando se ainda estava interessada no emprego. "Claro!," respondo na mesma hora. Marcamos nova entrevista com a Dra. Baquet, chefe do departamento, no dia seguinte.

Ao entrar na sala, senti exatamente a mesma coisa, uma sensação enorme de auto-confiança. "Mereço este emprego mais do que ninguém. Ninguém vai saber fazer melhor do que eu." Não era algo pedante ou egocêntrico, mas era exatamente como me sentia. E foi exatamente assim que começamos a conversa. Ela também parecia saber que a vaga era minha e já foi perguntando sobre datas, etc.

Não me lembro bem o rumo que a conversa tomou mas quando me dei conta, as palavras já tinham saído da minha boca e meus olhos já estavam marejados. "Sou voluntária da American Cancer Society. Já tirei três tumores do fígado em duas cirurgias. Conheço o câncer bem de perto, de um jeito que jamais pensei possível. Sou a única pessoa que sobreviveu ao câncer de fígado de que tenho notícias. Minha maior vontade é encontrar outros sobreviventes para não me sentir tão só." Os olhos dela se encheram de lágrimas na mesma hora. Dra. Baquet, um dos maiores expoentes na campanha contra o câncer, alguém que milita nesta causa há muitos anos, ficou imóvel por um instante. Então hesitou um pouco e disse: "Também não conheço, mas juntas vamos encontrar. Pode ter certeza, eles estão por aí."

Naquele momento me senti leve. A verdade tinha me libertado. Eu tinha mostrado a minha parte mais vulnerável e ao mesmo tempo tinha me tornado mais forte. Naquela hora ficou claro que ninguém queria aquela vaga mais do que eu. Aquela vaga era minha por direito. O mesmo motivo que me fazia uma "candidata capenga" para tantos outros empregos era a minha maior vantagem agora.

A vida é muito estranha mesmo. Como diz o ditado "O que seria do azul se todos gostassem do amarelo?" O que seria da Dani se todos os futuros empregadores procurassem por um boletim médico perfeito?

Vive la Différence! Ainda bem que há muita gente por aí disposta a arriscar... E o mais incrível aconteceu: voltei a trabalhar na Unviersidade de Maryland. Voltei a ser funcionária pública com todos os direitos e benefícios. E tudo que eu tinha deixado para trás de um dia para o outro acabou voltando para mim sem muita explicação, totalmente por acaso. Difícil de acreditar. Chega a ser quase um milagre.

6 comments:

Rbk said...

Oi Dani, leio seu blog desde uns dias antes da sua segunda cirurgia!
Além de te dar os parabéns por todas tuas vitórias, também quero te contar algo.
Conheço uma senhora que descobriu que tem câncer no fígado há pouco tempo. Estão programadas 3 sessões de quimioterapias bastante fortes para ver se o tumor diminui (usaram o termo CONTRACT) e, assim, poder operar. Ela perdeu o pai com este mesmo câncer, espero que tudo dê certo para ela.
Um beijo,
Rebeca

Anonymous said...

Lindas suas palavras, Dani. Minha avó já dizia - O que é do homem o bicho não come. A vida dá muitas voltas...que bom que vc voltou para a Universidade, ainda mais perto de casa!!! Impressionante como tem gente de toda parte do mundo ocidental no seu blog - tô vendo no mapinha ao lado. Estamos precisando divulga-lo no mundo oriental rsrs

Anonymous said...

Dani, fiquei emocionado com seu relato. Me senti também muito mal quando tive que deixar o emprego 2 meses após ser efetivado. Com aquela sensacao de que aquele cargo/emprego/projeto era meu!
Mas, infelizmente, nao temos escolhas. Como escrevi há uns tempos atrás, essa doença maldita acaba nos ensinando algo. Que vamos descobrindo aos poucos e nos tornando uma pessoa melhor.
Torco muito por você.
Força e nada de chorar pelo leite derramado. Concordo com você 100%.
Abs

Debora said...

Nossa Dani fiquei emocionada... Mas se é pra ser seu será, não adianta uma hora volta e foi isso o que aconteceu... Tenho certeza de que vc mandará muito bem...


Beijinhos.

Anonymous said...

Dani, descobri o seu blog há um bom tempo totalmente por acaso e nunca tinha postado. Por coincidência já tinha te visto pelo orkut, na Casar é Fácil e depois de ver as fotos que vc postou lá hoje resolvi comentar pela primeira vez... parabéns pelo blog, vc escreve muuuuiiiito bem.
Saiba que tem mais uma pessoa aqui torcendo por vc! Parabéns por mais esta conquista!

Bjs
Ana Carolina

Ah! As suas fotos estão lindíssimas!!!

Fernanda França said...

Dani, É um milagre. Dos bons ;o)