Dez
anos mais tarde, agora em 2002, fazia mais ou menos um ano que tinha voltado ao
Brasil. Depois de uma longa temporada nos EUA, entre a Virginia e Nova York, e
com dois diplomas americanos embaixo do braço e alguma experiência profissional
no exterior, me sentia às vezes mais americana que brasileira. Mas a parte
pior da adaptação estava passando, eu havia engrenado um MBA no Rio e o
trabalho era legal.
Se
por uma parte era ótimo estar em casa, ao lado da família, revendo os amigos,
indo à praia toda semana, por outro lado era meio complicada a sensação de me
sentir uma estranha dentro do meu próprio ninho. Mas sempre achei que levava um
jeitinho, do também escorpiano Drummond, para ser gauche na vida,
então não posso dizer que estava surpresa. Na esperança – ou seria desespero? –
de me conhecer/entender melhor, comecei a fazer psicanálise. Duas vezes por
semana passava pela experiência um tanto quanto sui generis de me deitar no
divã de costas para a analista para falar de assuntos que muitas vezes me
incomodavam. Mas nunca tive medo de enfrentar situações desconfortáveis e, no
final, certamente saí ganhando. O que eu não sabia porém é que tudo que estava
me acontecendo serviria para me preparar para o que ainda estava por vir.
Olhando
para trás, tudo fica muito claro, mas quando se está ocupada vivendo o dia a
dia, fica difícil imagimar como todas aquelas pecinhas vão se encaixando para
fazer sentido lá no final. Quando saí de Nova York queria apenas me dar um
prazo para decidir o que fazer: não me desfiz do meu apartamento no West
Village, não fiz mudança e continuei trabalhando remotamente. (O motivo inicial
da minha mudança foi justamente a troca de emprego e transferência do meu
H1B,visto de trabalho nos EUA, para uma outra empresa, o que me obrigava a
passar este período de transição fora do país.)
Tudo
correu praticamente como planejado, mas no meio do caminho, em meados de 2001,
surgiu meio que do nada e através de uma amiga próxima uma proposta de emprego
muito bacana no Rio. Embora não soubesse que estava gravemente doente, algo me
dizia que tinha chegado a hora de passar uma longa temporada em casa. Como toda
decisão para mim é muito difícil, depois de pensar muito, e até pelo fato da
proposta de trabalho ser tão diferente, resolvi sublocar meu apartamento em
Manhattan e me dar um prazo de seis meses no Rio para cuidar da vida.
Os
seis meses se passaram, as coisas foram entrando nos eixos e eu resolvi então
aumentar o prazo para um ano. Tudo ia bem, fora uma anemia que me deixava meio
fraca de vez em quando. Não fraca o suficiente para me fazer faltar ao trabalho
ou deixar de sair no fim de semana, mas como já fazia mais de um ano que me via
nesta condição, resolvi investigar. Mais uma vez, a minha curiosidade valeu a
pena. Pensando bem, daquela vez, a minha curiosidade me salvou. Perdi a conta
de quantos médicos me viram – pelo menos uns 10 no Brasil, além de outros tantos
que já tinham me visto em Nova York – e nada de diagnóstico. Mas eu queria uma
resposta.
Até
que ouvi falar num médico ortomolecular que tinha uma dieta maravilhosa e
resolvi me consultar. Desta vez, não para investigar a minha anemia, mas para
perder uns três quilinhos que me incomodavam. Como já imaginava, o médico disse que
não faria nada sem antes ver meus exames, então saí do consultório com uma
lista enorme. Dias depois, o resultado. Não sou médica nem sou “metida à médica”.
Não me automedico, não receito nem aspirina aos outros, mas não sou analfabeta.
Ao abrir o envelope com os resultados dos exames de sangue, percebi que havia
algo muito errado. Várias taxas mostravam diferenças estratosféricas entre os meus valores e os valores desejáveis. Na mesma hora
liguei para o médico, que estava de férias em Miami.
Sem
saber bem o que fazer, voltei a contatar a hematologista, que desta vez pareceu muito assustada quando me viu. Me encaminhou para uma gastro, que me indicou
uma ultra que só poderia ser realizada por uma médica no Rio de Janeiro. Sorte
a minha, esta médica era amiga da minha família. Na mesma hora, meus pais
ligaram para ela e no dia seguinte, estava eu aguardando o meu destino, naquela
sala de ultrassom, um ambiente até então estranho, mas que – mal sabia eu – se tornaria
muito familiar para mim.
E
o resto desta história vocês já sabem: tumor, cirurgia, CTI, hospital, casa,
mais hospital, químio, trabalho, casa, mais químio, trabalho, casa...e a vida que
segue. Mais o que fica é a transformação, é a oportunidade de poder ver o mundo sob um ângulo diferente, de sentir-me envolta por uma corrente do bem,
por poder me conectar com algo muito maior do que eu mesma.
O
ano de 2002 foi inegavelmente difícil para mim e para todos ao meu redor,
mas são tantas lições aprendidas que me sinto extremamente grata e até mesmo
privilegiada por ter passado por uma situação tão delicada com tão pouca idade.
Aprendi muito e, melhor, tive e ainda tenho tempo para poder usufruir um pouco
deste aprendizado.
Como
diz uma amiga, que enfrentou um linfoma com uma serenidade absurda (coisa que eu
seria incapaz de fazer), o grande desafio agora é conseguir manter vivo o efeito
da pancada, aquela que dói lá no fundo e que deixa a gente meio tonta e cheia
de questionamentos. Não quero a dor da doença, mas quero levar comigo para
sempre o que aprendi com ela, a habilidade de enxergar o que realmente vale a
pena. O único problema é que a rotina e também o tempo – ah este tempo – teimam
em querer apagar as tais lembranças, e volta e meia tenho que escrever textos
como este que me fazem reviver momentos importantes e me forçam a focar no que realmente
interessa.